sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Norma Valêncio: "Falta seriedade e transparência ao gestor brasileiro"

As tragédias ocorridas na virada de 2010 em cidades como Angra dos Reis (RJ) e São Luiz do Paraitinga (SP) colocaram em xeque, mais uma vez, os trabalhos dos governos federal, estaduais e municipais no que diz respeito à prevenção de desastres. Construções em áreas de proteção, ausência de um sistema de alerta e a precariedade do atendimento às populações atingidas deixaram claro que o Brasil precisa repensar suas estratégias para evitar a repetição dos desastres.

No livro Sociologia dos Desastres: construção, interfaces e perspectivas no Brasil, lançado no fim de janeiro pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas Sociais em Desastres (Neped) do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), os pesquisadores debatem as causas dessa rotina de desastres e concluem que, na origem das tragédias, está a falta de uma cultura de prevenção e proteção civil.

Nesta entrevista a ÉPOCA, Norma Valêncio, coordenadora do Neped, critica a falta de seriedade e transparência dos governantes brasileiros e explica o que impede, até hoje, que o país tenha um serviço de Defesa Civil capaz de envolver todos os setores da sociedade e efetivamente defender a população civil.
ÉPOCA – Um levantamento da ONG Contas Abertas mostrou que, em 2009, o governo federal gastou dez vezes mais com reparos de desastres do que com a prevenção deles. Esse tipo de dado é um padrão no Brasil. Qual é a origem desse fenômeno?
Norma Valêncio – Há muitas origens. Duas delas, aparentemente ambíguas, são: a cultura acadêmica verticalizada e a cultura política reativa e conservadora. A cultura acadêmica que valoriza a verticalização da formação profissional gera especialistas excelentes, mas pouco predispostos a compartilhar visões de mundo com sujeitos diferentes de si. Por conta da falta de diálogo, esses profissionais e as instituições em que trabalham atuam minimizando os riscos sabidos mas não se apercebendo de outros. A recorrência de desastres, assim, é a materialização dessas lacunas. De outra parte, temos uma cultura político-institucional cuja burocratização instituiu o gosto pela manutenção das relações com certos grupos de poder. Se há um lobby que força investimentos no setor da construção civil, associado a profissionais empenhados em fazer ajustes a tais interesses, o gestor público se acomoda e perde a dimensão global dos efeitos cumulativos dessas intervenções. A setorialização leva um grupo a cuidar da insuficiência da calha do rio para receber as águas pluviais enquanto o outro está construindo novas pistas marginais. Sendo conservador, o gestor testemunha estupefato o desastre e, infelizmente, recorre aos mesmos setores e especialidades para achar soluções, o que faz o desastre persistir, ainda que em nova roupagem.

ÉPOCA – Alguns municípios são atingidos mais ou menos da mesma forma e nos mesmos locais ano após ano. Se os desastres são motivo de desgaste político, por que muitos governantes não agem para controlar ou resolver os problemas?
Norma – Nem sempre o desastre só traz desgaste político. Isso depende muito de qual ética ancora o gestor. Em primeiro lugar, a ocorrência de desastres implica a possibilidade de captação de recursos públicos adicionais e, ainda, de doações privadas, para mitigar danos e para a reconstrução. Pode ser um bom negócio tanto para ofertadores de produtos e serviços ao município, quanto para políticos que querem alavancar sua imagem com a adoção de medidas assistencialistas. Claro que há os que se exasperam, sofrendo junto com a população afetada, mas que não conseguem acionar estratégias, recursos e equipes que lhes ofereçam um plano de reconstrução alternativo, que reduza a vulnerabilidade socioambiental. Nas campanhas políticas que vem por aí, não dá pra jogar o desastre na cara do adversário, porque regiões desenvolvidas e atrasadas, das múltiplas colorações partidárias, são acometidas do mesmo mal. É uma questão que interfere no planejamento de Estado e assim deveria ser tratada.

ÉPOCA – O livro debate a relação entre desigualdade social e exposição ao risco de desastres. Como se dá esta relação?
Norma – O Brasil naturalizou as desigualdades distributivas que se manifestam, entre outros, nos processos de territorialização precários no campo e na cidade. Por trás da moradia frágil que, inserida nas bordas periféricas, sofre o impacto da enchente ou do deslizamento, há o sujeito oculto do Estado, que não levou a infraestrutura e equipamentos públicos essenciais, não levou educação de qualidade, não levou saúde, não levou segurança pública até ali. Essa falta de assistência fica também expressa quando as medidas atendimento às famílias afetadas inexistem ou são indignas. Chamar de desastre o barraco que despenca do morro e isso motivar, apenas, a melhoria do sistema de alerta para as chuvas é complicado para nós, cientistas sociais. Deveria haver prioridade na leitura das informações dos "sistemas de alerta" para a condição social desastrosa daquele sujeito ou região, e isso mobilizar o ente público, independente das condições do tempo.

Nas campanhas políticas que vem por aí, não dá pra jogar o desastre na cara do adversário, porque regiões desenvolvidas e atrasadas, das múltiplas colorações partidárias, são acometidas do mesmo mal

ÉPOCA – O livro rebate uma percepção difundida até por algumas autoridades de que a "culpa" dos desastres é dos moradores de áreas irregulares. Ainda que hoje esteja claro que a ausência do poder público é o fator preponderante, que papel tem a educação na prevenção de desastres?
Norma – Depende muito do que se vai chamar de processo educativo, pois, do meu ponto de vista, são as populações desassistidas que precisam se organizar para ensinar os gestores, os peritos e a sociedade em geral, a partir e seu conhecimento empírico, forjado a muito sofrimento, o que é barbárie e apontar os caminhos para a integração social, com base na cidadania. O ente público e os grupos que estes apoiam, no geral, calcam sua afirmação no mundo contestando o ponto de vista daqueles a quem as políticas não alcançam ou alcançam de forma desfavorável. Vejo com preocupação as práticas de silenciamento dos empobrecidos, como através de ações de conscientização da população, como se “matar um leão por dia” não exigisse muita consciência sobre o que é a realidade social vivida. Conscientização é o que devemos ter nós, os incluídos, ao ver os corpos cobertos de feridas dos moradores do Jardim Romano e do Jardim Pantanal [bairros de São Paulo] que estão há semanas vivendo sob águas fétidas e contaminadas na região mais rica do país.

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