terça-feira, 3 de agosto de 2010

Lógica favorável

Carlos Melo - O Estado de S.Paulo

Pingo é letra. Há um ano, avesso ao fla-flu da política brasileira, o bom entendedor já dizia que a candidatura do Planalto adquiria condições de competitividade favoráveis. A variável de mais difícil previsão era a economia, mas, ultrapassada a crise, o governo pôde colher o que plantara com acuidade. Agora, as pesquisas confirmam a lógica: Dilma Rousseff consolida candidatura e, no momento, oferece sólidas condições de vitória. A seu favor, somam-se resultados, otimismo, bandeiras populares, medos e promessas, fartos recursos, um time unificado, máquina, capilaridade territorial, social e tempo de TV, além de prestigiadíssimo padrinho.

Explicam o "fenômeno" fatores classificados como "responsáveis" e "culpados". Por "responsáveis", as circunstâncias forjadas na ação do governo, méritos do jogador e seu time que impulsionam e tendem a impulsionar a ministra. Por "culpados", a sucessão de desacertos, erros e desatinos no campo da oposição. Como tudo, em política não há "sorte", mas escolhas acertadas (ou não) na dinâmica dos fatos, na vertigem da roda da fortuna.

Forçoso admitir que o saldo das escolhas do presidente Lula parece ser suficiente para conservação e manutenção do poder conquistado em 2002. Ao compreender o movimento do mundo, o papel das finanças, a trajetória econômica que o País percorria e as poucas opções de que dispunha, preferiu não reinventar a roda: deu continuidade, reforçou fundamentos e adquiriu a imprescindível credibilidade.

Abaixou a poeira, garroteou seu partido, asfixiou a esquerda, contemporizou, cooptou, dividiu, distribuiu renda, formou mercados, incluiu multidões ao mesmo tempo em que viabilizava conglomerados, fusões e aquisições. Alterou a face social e a composição do poder econômico; constituiu um novo "bloco no poder"; apareceu para o mundo. Mesmo sem resolver outras questões básicas, implementou fuga para frente. Transgrediu, decepcionou a alguns? Provavelmente. Mas deu certo.

Na ambiguidade que, acima de tudo, o caracteriza, Lula contemplou "os debaixo" com políticas públicas e efeitos da estabilidade; apaziguou os "de cima", respeitando contratos, garantindo regras, mantendo Meirelles. Não contrariou, conciliou. No plano parlamentar, juntou joio e trigo; no administrativo, gregos e troianos; na economia, ortodoxos e heterodoxos. Sob qual outro presidente o Banco Central de Meirelles conviveria com a equipe de Guido Mantega?

Chega ao último ano de mandato com ousadia para fazer de uma gestora tecnicamente qualificada e politicamente disciplinada - sem raízes históricas no PT, experiência eleitoral e luz própria - a candidata cuja missão consiste em dar continuidade ao governo, administrando um projeto de poder com a lealdade dos militantes, sem a presunção das prima-donas e a aleivosia natural das estrelas do partido, com deferência ao líder, a quem se refere como "o presidente", às vezes "o mestre".

Em política, nada é fortuito. A façanha não se sustenta somente pelo carisma que hoje é atribuído ao ex-metalúrgico; bom lembrar que, no passado, o "cara" perdeu três eleições, duas no primeiro turno. Antes, o carisma presente é consequência dos resultados que entregou. No mais, é importante também admitir o bocado da oposição na consolidação do nome da ministra. Eis a categoria dos culpados.

Ranços, piadas e e-mails recheados de preconceito ocupam a atenção de parte da classe média tucana. De nada servem. A verdade é que, sistematicamente, a oposição e sua base recusaram-se a decifrar Lula, que, como a esfinge, os devora. Acostumou-se a subestimar Luiz Inácio, talvez, em virtude das vitórias de FHC, talvez por soberba. O fato é que não se acreditou que, presidente, pudesse se converter ao ideário de Pedro Malan, tão racional quanto inescapável. Dizia-se que manietado seria por Dirceu e companheiros. Sonharam com um governo reduzido ao inferno da inflação e aos protestos de rua. Iludidos com o mensalão, apresentaram, na reeleição, candidato incapaz sequer de defender o celular que, após as privatizações, o cidadão, alegre, traz no bolso. Em 2006, foram jantados e não admitiram.

Com o sucesso de José Serra em 2004, 2006 e 2008, ungiram-no candidato natural. Acreditando em predestinação, notórias divergências tucanas foram ignoradas. Mas incríveis são as dificuldades de Serra se fazer opção do PSDB: em 2002, a briga com Tasso; em 2006, a disputa com Alckmin; agora, queda de braço com Aécio. No desespero de correligionários e aliados, mesmo antes de virar candidato corre o risco da cristianização.

Especialista em wishful thinking, o PSDB exercita sua propensão a acreditar que as coisas serão do modo como deseja: ora afiança que "na campanha, Dilma será um desastre", ora que "o PT não a deixará governar"; ora que "um escândalo mudará a cena", ora que "Lula não transferirá votos", ora que Aécio aparecerá para salvar a lavoura. Ora, ora, ora... Foge-se do essencial: não é Dilma que enfrentarão, o adversário é Lula e toda sua fortaleza. O presidente não será rei posto, posto que está bem vivo. Dilma é seu lugar-tenente.

Melhor seria trabalhar, formular crítica substantiva, programática; de modo inteligível, qualificar "o futuro" e o que afinal se entende por "continuidade sem continuísmo", "lulismo sem Lula", "pós-Lula"; propor a reforma de um sistema deletério; definir a estratégia e o líder capaz de efetivá-la. Sem isso, o resto é silêncio entremeado por muxoxos.

Claro, nada está definido. A vida é volátil e as certezas traiçoeiras. O fato novo é hipótese sempre plausível. Também verdade é que a variável sob maior expectativa será o desempenho pessoal da candidata. Realmente, a ministra não é exemplo de carisma e simpatia televisiva. Mas, ainda que testado e experiente, o mesmo se pode dizer de José Serra. Nesse quesito, os times terão que suar bastante.

Cientista político, doutor pela PUC-SP, professor de Sociologia e Política do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper). É autor de Collor: o Ator e suas Circunstâncias


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