quarta-feira, 24 de agosto de 2011

A proibição de incesto em Lévi-Strauss
Josefina Pimenta Lobato
jolobato@ig.com.br
Mestre em Filosofia, Doutora em Antropologia Social e Professora Adjunta do Centro Universitário Fumec, Brasil.
1999

Artigo publicado na Revista Oficina: Família, seus conflitos e perspectivas sociais, Belo Horizonte, ano 6, n 9, p.14-20, jun. 1999.

Idioma: português do Brasil
Palavras-chave: Incesto, família.

A proibição do incesto é sem dúvida um fenômeno universal. Não há sociedade alguma em que não haja uma norma que interdite o casamento entre pessoas situadas em um determinado grau de parentesco. As pretensas exceções a essa condenação unânime ao incesto, a do casamento de irmãos nas famílias reais do Egito Antigo, do Império Inca ou do Havaí, não devem ser tomadas como um indício da inexistência, entre eles, da noção de incesto e de sua proibição, mas apenas da adoção de uma forma diversa de classificar as relações que se enquadram nessa categoria. A constatação de que as relações incestuosas têm sido consideradas, nas mais diferentes épocas e lugares, como intrinsecamente perniciosas, condenáveis, não significa a universalidade de sua observância. Psicanalistas, sacerdotes, médicos e educadores sabem muito bem que as transgressões à proibição do incesto são uma realidade bem mais freqüente do que geralmente se imagina.1

Em busca das razões pelas quais o incesto tem sido tão veemente e extensivamente condenado, os cientistas sociais têm sugerido as mais diversas explicações. A proposta de Lévi-Strauss, a de que a proibição do incesto é universalmente imposta a fim de estabelecer a "troca de mulheres entre homens" – condição indispensável à instituição do matrimônio, da família, do parentesco e da própria vida social –, causou um grande impacto no contexto da reflexão antropológica, além de ter uma repercussão expressiva em outras áreas do saber. Antes de abordar as argumentações propostas por Lévi-Strauss, que são de difícil compreensão e aceitação, devido a sua originalidade e estranheza, farei algumas ressalvas e críticas a duas outras explicações relativas à universalidade da proibição do incesto, facilmente acatadas pela maior parte das pessoas.2

Uma das explicações mais comuns quanto à universalidade da proibição do incesto segue uma crença muito difundida entre nós, a de que o incesto foi proibido a fim de proteger a espécie humana das conseqüências genéticas nefastas do casamento entre parentes próximos. A fragilidade desse tipo de explicação, aparentemente sólida e inquestionável, deve-se ao fato de ela não levar em conta um fator inegável: o de que é sobre as relação de parentesco, e não sobre as relações de consangüinidade, que a proibição do incesto se constitui.3 A prevalência dos laços de parentesco sobre os de consangüinidade, na instituição da proibição do incesto, aparece claramente em sociedades cujo sistema de parentesco é unilinear. Com efeito, nessas sociedades a relação tida como incestuosa atinge certos parentes, os primos paralelos (filhos de irmãos do mesmo sexo), que, do ponto de vista da consangüinidade, são idênticos aos primos cruzados (filhos de irmãos de sexo diferente), sobre cujo relacionamento não há nenhuma interdição, uma vez que, de acordo com o sistema unilinear, eles não são parentes entre si, já que cada um deles pertence a um grupo de parentesco diferente.

Uma outra explicação fundamenta-se na idéia de que haveria um horror natural ao incesto, devido a fatores genéticos ou a tendências psíquicas ligadas “ao papel negativo dos hábitos cotidianos sobre a excitabilidade erótica” (LÉVI-STRAUSS. 1976a:57). Como contestação a esse tipo de explicação, basta considerar que, se houvesse um horror natural ao incesto e a conseqüente falta de desejo de praticá-lo, não seria preciso proibi-lo, pois só se proíbe aquilo que se deseja. Além disso, as constantes violações da proibição são uma prova suplementar de que não há nenhum horror instintivo a esse tipo de relação. É preciso observar também que se o incesto é interdito socialmente é porque ele ameaça, de alguma forma, a ordem social.

Após ter demostrado que as razões apresentadas por esses dois tipos de explicação não se fundamentam em argumentações sólidas, Lévi-Strauss muda totalmente a forma de abordar essa questão. Por um lado, ele se recusa a enfocar a proibição do incesto em termos biológicos ou psíquicos, pois o que realmente importa, no seu entender, são as razões que fazem do incesto algo socialmente inconcebível:

Nada existe na irmã, na mãe, nem na filha que as desqualifique enquanto tais. O incesto é socialmente absurdo antes de ser moralmente condenável (LÉVI-STRAUSS. 1976:526)

Por outro, ele abandona qualquer espécie de explicação substantiva – ligada à existência ou não de alguma coisa intrínseca às pessoas, cuja relação é interdita como incestuosa, que justifique a proibição do casamento entre elas - e adota uma abordagem estruturalista – na qual o fator explicativo encontra-se não nos termos, mas nas relações entre eles.4

Sob esse novo ângulo eminentemente estrutural, o que se deve levar em conta é, antes de tudo, a posição ocupada pelas pessoas, cujo casamento é classificado como incestuoso, em um determinado sistema de parentesco,. A questão central da razão de ser da proibição do incesto consiste, assim, antes de tudo, em se saber por que as pessoas, que estão na posição de pai e irmão, não podem reivindicar como esposa aquelas que estão na posição de filha ou irmã.

Uma primeira resposta a essa questão, que é dada de forma inédita e, para o nosso senso comum, inesperada, é de que objetivo primeiro da interdição do incesto é:

imobilizar as mulheres no seio da família, a fim de que a divisão delas ou a competição por elas seja feita no grupo e sob o controle do grupo, e não em regime privado (LÉVI-STRAUSS. 1976a:85).

Com efeito, ao fazer com que todos os homens que, em razão dos laços de paternidade ou de fraternidade, encontram-se ligados a certas mulheres por uma relação de posse, "abram a mão" da possibilidade de se unirem a elas matrimonialmente, em benefício de outros homens que se encontram, por sua vez, igualmente proibidos de se casarem com suas filhas e irmãs e, assim, sucessivamente, a proibição do incesto obriga-os a estabelecer uma série de normas através das quais se possa determinar a forma pela qual será feita a distribuição das mulheres, que estão imobilizadas no seio do grupo familiar. A necessidade de se regular a distribuição das mulheres e não a dos homens decorre do fato das mulheres , como esposas, constituírem-se um valor essencial à vida do grupo “tanto do ponto de vista biológico quanto do ponto de vista social” (LÉVI-STRAUSS. 1976a:521).5

A obrigação por parte dos homens, que se situam na posição de paternidade e de fraternidade, de darem suas filhas e irmãs em casamento a outros homens, que estão submetidos ao mesmo tipo de situação, constitui, assim, a finalidade última da proibição do incesto, o ponto fulcral onde se revela a verdadeira natureza dessa regra aparentemente negativa:

A proibição do incesto é menos uma regra que proíbe casar-se com a mãe, a irmã ou a filha do que uma regra que obriga a dar a outrem a mãe, a irmã e a filha. É a regra do dom por execelência (LÉVI-STRAUSS. 1976a:522).

Como ocorre com toda dádiva, a dádiva matrimonial cria naqueles que a recebem a obrigação de retribuir e assim sucessivamente.6 Através da constituição desse circuito ininterrupto de dádivas recíprocas, a proibição do incesto estabelece a troca de mulheres como base inelutável de qualquer espécie de instituição matrimonial:

A relação global de troca que constitui o casamento não se estabelece entre um homem e uma mulher como se cada um devesse e cada um recebesse alguma coisa. Estabelece-se entre dois grupos de homens, e a mulher figura aí como um dos objetos da troca, e não como um dos membros do grupo entre os quais a troca se realiza (LÉVI-STRAUSS. 1976a:155).

Tal hipótese, além de causar admiração e, em certos casos, rejeição, por subverter completamente a forma pela qual estamos habituados a pensar o casamento, costuma provocar também uma reação negativa, por colocar as mulheres como objeto de transação entre homens. Não se pode esquecer, todavia, que para se combater a desigualdade entre os sexos é preciso conhecer suas raízes mais profundas. Razão pela qual a noção de que o casamento estabelece um laço de reciprocidade e de aliança entre os homens, por meio das mulheres, tem sido considerada como válida e operacionalmente útil, não apenas por pensadores de várias áreas do saber, mas também por aqueles que se empenham em defender a causa feminista.

Simone de Beauvoir, que tomou conhecimento da noção de troca de mulheres de Lévi-Strauss em 1949, momento em que estava profundamente interessada em analisar a condição feminina através dos tempos, acata suas idéias ao atribuir a razão pela qual as mulheres jamais “constituíram um grupo separado que se pusesse para si em face do grupo masculino ao fato “de o laço de reciprocidade que estabelece o casamento não se firmar entre homens e mulheres e sim entre homens através das mulheres. Pelo mesmo motivo, “a mulher não é nunca o símbolo de sua linhagem, ela é apenas a mediadora do direito, não a detentora” (BEAUVOIR. 1970: 92).

Uma outra pesquisadora, também ligada ao movimento feminista, a antropóloga Gayle Rubin, ressalta, igualmente, a operacionalidade da noção da troca de mulheres, já que a constatação, por meio dela, de que locus da opressão da mulher situa-se na organização social do parentesco, da sexualidade e da reprodução, e não na biologia, constitui o degrau inicial e essencial para a construção de um arsenal de conceitos, indispensáveis à compreensão dos fatores que têm servido de alicerce para a elaboração de normas, valores e crenças que fundamentam a subordinação das mulheres aos homens em todas as sociedades humanas.

Georges Devereux, etnólogo e psicanalista, inventor da etnopsiquiatria, enfatiza, por sua vez, a fecundidade operacional da noção de troca de mulheres de Lévi-Strauss na interpretação de diferentes eventos psíquicos. Um desses eventos concerne ao sonho de um jovem, oriundo de um país colonial de fala francesa, relatado durante uma sessão de terapia psicanalítica, na qual esse jovem expressa a sensação de que a única forma que teria de sanar sua dívida, em relação a um amigo de cuja irmã tinha sido amante, seria ceder uma mulher ligada a ele por algum vínculo de parentesco:

Parece-me que em sonhos como na realidade, sinto que devo a meu amigo uma mulher que me pertença de uma ou outra maneira, uma mulher com quem esteja aparentado. Tenho a sensação de ser devedor porque seduzi a sua irmã e depois a abandonei para me tornar amante da mulher com quem me casei. Tenho a obrigação de ceder-lhe uma mulher ligada a mim por um vínculo de parentesco (DEVEREUX. 1975:179).

A troca matrimonial instituída pela proibição do incesto, que não se faz aleatoriamente, obedece a duas leis de reciprocidade: a da troca restrita, que fundamenta o casamento dos primos cruzados, e a da troca generalizada, que está na base do casamento com a prima cruzada matrilateral. O casamento por livre escolha, tal como o conhecemos, fundamenta-se igualmente na troca generalizada, mas em sua forma complexa.7

Desse prisma, o incesto é o ponto onde a reciprocidade se anula, onde há uma recusa à troca e por conseguinte à aliança. Como a recusa à troca depende da lei de reciprocidade, vigente na sociedade em questão, compreende-se o porquê de certos relacionamentos considerados como incestuosos, em uma determinada sociedade, não o serem em outra. O casamento com a prima cruzada patrilateral, por exemplo, tido como desejável em um sistema de troca restrita, no qual há uma dádiva bilateral de mulheres entre os membros de dois grupos de parentesco, torna-se incestuoso no sistema de troca generalizada que se fundamenta em dádivas cujo retorno nunca é direto.8

A proibição do incesto institui não só o casamento mas, também, e simultaneamente, o parentesco. Com efeito, uma estrutura de parentesco por mais simples que seja, não pode se restringir jamais ao núcleo familiar composto pura e simplesmente de um casal e seus filhos.9 Ela deve incluir, desde o início, a relação entre aquele que cede a mulher (o irmão ou pai da noiva) e aquele que a recebe (o marido), pois é essa troca que fornece o eixo em torno do qual as relações de filiação e de afinidade se constituem.

A concepção, proposta por Lévi-Strauss, de que é através da troca de mulheres que o parentesco se institui e se perpetua, tem também, a meu ver, uma importância fundamental para a compreensão da razão dos sistemas de parentesco matrilineares não serem a imagem simétrica e invertida dos patrilineares, como ocorreria caso fosse o laço entre mãe e filha, e não o existente entre o tio materno (o irmão da mãe) e o sobrinho, que tivesse as mesma funções do laço entre pai e filho, nos sistemas patrilineares. Conforme procuro demostrar, em meu artigo Troca de mulheres: destino ou opção?, essa inferência parece-me lícita, apesar de Lévi-Strauss não tê-la realizado, uma vez que a impossibilidade prática de se criar um sistema de parentesco realmente matrilinear, no qual o laço mãe e filho fosse equivalente ao existente entre pai e filho, nos sistemas patrilineares, só se torna inteligível quando se pensa na noção de troca de mulheres como um dispositivo por meio do qual a dependência unilateral do homem em relação à mulher, para a obtenção do direito à sua progênie, como marido ou como irmão, transforma-se em uma dependência recíproca entre homens, que obtém esse direito uns dos outros.



Notas

No Le Nouvel Observateur (1983), foi publicado um artigo dedicado exclusivamente ao problema do incesto na França. Logo no início do artigo, é posto em evidência o fato de que o incesto, embora seja uma realidade inegável, tem se mantido encobertado por ser “sem dúvida, o segredo mais bem guardado, o mais terrível, o único que resiste à grande maré de permissividade” (1983:36).
Há ainda um terceiro tipo de explicação, a de Durkheim, a qual não farei referência.
É essa identificação entre parentesco e consangüinidade, tão comum ao nosso modo de pensar, que dificulta a percepção, por parte das pessoas que vivem em nosso contexto cultural, de que “um sistema de parentesco não consiste nos elos objetivos de filiação ou consangüinidade dados entre os indivíduos; só existe na consciência dos homens, é um sistema arbitrário de representações” (LÉVI-STRAUSS. 1970:70).
Esse tipo de abordagem é análoga a aplicada à analise estrutural dos fonemas. Com efeito, de um ponto de vista estrutural, os fonemas ganham um valor diferencial devido à posição que ocupam no seio de um sistema fonológico e não em razão de sua individualidade fônica. O som da letra erre de carro e de caro, por exemplo, são fonética e fonologicamente distintos, já o som da letra erre de porta, tal como ele é pronunciado pelos paulistas do interior e pelos mineiros, apesar de serem foneticamente distintos, não o são em termos fonológicos.
Quando Lévi-Strauss procura justificar o fato da mulher ser um valor essencial à vida do grupo, ele se refere, antes de tudo, ao valor da mulher como esposa. Isso se revela na referência que ele faz à situação de mais completa abjeção que se encontrava um jovem indígena bororo, simplesmente devido ao fato de ser solteiro, razão única de sua “aparente maldição” (LÉVI-STRAUSS. 1976:79). Na maior parte das vezes, no entanto, o valor da mulher aparece muito mais como um postulado do como alguma coisa que necessita ser demonstrada. Em certas passagens é dito que essa é uma atitude psicológica suficientemente documentada, em outras são citados também certos aforismas, a exemplo de um que afirma que “para um homem sem mulher não há paraíso no céu nem paraíso na terra”. Em momento algum, todavia, ele nos dá uma justificativa realmente satisfatória desse valor. No entanto, se pensarmos que o que está em jogo no casamento não são apenas os direitos sexuais ou econômicos sobre a mulher, mas sobretudo o direito à sua progênie, a questão do valor da mulher aparece como inevitavelmente ligado à assimetria da relação entre os sexos, no que se refere ao estabelecimento das relações de parentesco, conforme procuro demonstrar em meu artigo Troca de Mulheres, Destino ou Opção (LOBATO. 1992).
Como ressalta Marcel Mauss em seu famoso livro, Ensaio sobre a Dádiva.
Referindo-se a esse fato, Jacques Lacan pondera que, apesar de crermos que nas estruturas complexas da aliança, sob cuja lei vivemos, há liberdade nas escolhas matrimoniais, a estatística já deixa entrever que, “se essa liberdade não se exerce ao acaso, é porque uma lógica subjetiva a orientaria em seus efeitos”. A seu ver, a vida em sociedade está sujeita “às regras de aliança, as quais ordenam o sentido em que se efetua a troca de mulheres, e aos préstimos recíprocos que a aliança determina” (LACAN. 1998:278).
É por essa razão que Lévi-Strauss afirma que a análise rigorosa do casamento dos primos cruzados nos permite “atingir a natureza última da proibição do incesto” (LÉVI-STRAUSS. 1976:181).
Ver LÉVI-STRAUSS (1970:65) e (1976b:91).



Referências Bibliográficas

BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: Fatos e Mitos. São Paulo: Difusão Européia do Livro. 1970.

DEVEREUX, Georges. Etnopsicoanálisis Complementarista. Buenos Aires: Amorrortu. 1975.

Dossier. L’inceste en france. Le nouvel observateur. Paris. 11 Nov. 1983. Notre Époque, p.36-39.

LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1998.

LÉVI-STRAUSS, Claude. 1970. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.

________. Antropologia estrutural dois. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 1976b.

________. As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis: Vozes. 1976a.

LOBATO, Josefina Pimenta. Troca de mulheres: destino ou opção?. In: Anuário antropológico 88. Brasília e Rio de Janeiro: Editora da Universidade de Brasília e Tempo Brasileiro. 1992.

MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In: MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. vol.2. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. 1974.

RUBIN, Gayle. The traffic in women: notes on the political economy of sex. In: REITER, Rayna. (org.). Toward an anthropology of women. New York: Monthly Review Press. 1975.