domingo, 15 de agosto de 2010

Estudo da UFSC traça perfil de jogadores brasileiros

A grande maioria dos jogadores de futebol brasileiros que vão trabalhar no exterior são caçulas. Raros são os primogênitos. Muitos tiveram irmãos mais velhos que também desejavam jogar futebol, mas precisaram abandonar esse projeto para contribuir com a economia da família. Menos frequente do que o “caçulismo”, mas também recorrente entre os jogadores brasileiros de clubes globais é a origem em famílias com a ausência do pais e mãe vivendo com os avós maternos.

ão jovens com origem nas chamadas camadas sociais subalternas e a maioria “cruza fronteiras geográficas sem ingressar em países, pois suas fronteiras são os clubes”.

Os dados fazem parte de uma pesquisa desenvolvida pela professora Carmen Rial, do Departamento de Antropologia da UFSC. O estudo aconteceu no período de 2003 a 2009, com cerca de 40 jogadores brasileiros de futebol que viviam ou haviam morado e exercido sua profissão no exterior.

“Concentrei o levantamento na cidade de Sevilha, na Espanha, onde morei quatro meses, com intervalo de um ano, e em Eindhoven, na Holanda, onde estive em três oportunidades, com intervalo de dois anos. Também conversei com muitos familiares, amigos, empresários, técnicos e secretários, realizei entrevistas, assisti a treinos e a jogos, visitei seus restaurantes preferidos e algumas de suas casas no Canadá (Toronto), Holanda (Almelo, Groningen, Alkmaar, Roterdã, Amsterdã), Japão (Tóquio), na Grécia (Atenas), na India (New Dehli), na Tailandia (Bangkok), no Marrocos (Marraqueche) e também no Brasil (Fortaleza, Salvador, Belém)”, conta Carmen.

Foram ainda realizadas longas conversas telefônicas com jogadores e seus familiares na França (Lyon, Le Mans, Nancy, Lille), Mônaco e Bélgica (Charleroi). O objetivo do estudo foi “traçar um perfil desses emigrantes especiais, através do escrutínio de dimensões que marcam seus estilos de vida”, explica Carmen, orientadora de dissertações e teses que têm como objeto de análise o futebol e vêm sendo desenvolvidas a partir do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFSC.

Caçulismo
De acordo com Carmen, a concentração de caçulas entre os jogadores entrevistados mostra que, na repartição familiar das atividades, estes foram beneficiados com a possibilidade de realizar o projeto mais desejado entre os jovens de camadas subalternas no Brasil: o de se tornarem jogadores de futebol profissional.

Para a pesquisadora, o “caçulismo” corrobora a idéia de que a carreira de jogador de futebol é um projeto familiar, no qual é necessário algum excedente econômico para propiciar a liberação de um integrante do trabalho remunerado.

Segundo ela, jogar futebol no Brasil não é ocupação da parcela social considerada miserável, pois o esporte demanda um mínimo necessário para um jovem se profissionalizar (chuteiras, contatos com os clubes, passagens de ônibus, dispensa do trabalho). Também não é ocupação das camadas sociais dominantes, cujos projetos de continuação da reprodução social do capital prevêem que os herdeiros, preferencialmente os filhos homens, assumam a liderança dos negócios.

Futebol é um projeto possível para uma larga faixa da população brasileira, a das camadas subalternas, que vai dos pobres até as camadas médias baixas - cerca de 90% dos entrevistados. “Foi nesta faixa que encontrei a maioria dos meus interlocutores, com uma origem social de pais operários do ABC: trabalhadores rurais, serralheiros, carpinteiros, funileiros, vendedores ambulantes, empregadas domésticas, sacoleiras, marinheiros. As histórias que ouvi têm muitos pontos em comum, são histórias de vida de famílias que, como reconhecem, não passavam fome, mas passavam necessidade.”, descreve Carmen.

Exílio voluntário
No mercado restrito e controlado do futebol global, em que as nacionalizações são exigências legais e o jogador precisa conviver com diversas dificuldades provocadas pela distância do Brasil, a pesquisa traça o perfil de um emigrante que mesmo com a obtenção da cidadania legal continua sendo visto e percebendo-se como estrangeiro. “Adquirir a nacionalidade do país de acolhida nem de longe significa adquirir sentimentos nacionalistas em relação a esse país ou uma identidade outra que a brasileira. A brasilidade permanece como única identidade de pertencimento étnico”, avalia a jornalista e antropóloga, doutora em Antropologia e Sociologia pela Universidade de Paris.

Sua vivência com os jogadores mostra que o Brasil é permanente no estilo de vida dos “jogadores globais”. Na circulação entre os espaços mais frequentados nos seus cotidianos – a casa, o automóvel, o estádio, o restaurante, a Igreja Evangélica – o contato com o país de origem é constante. “Todas as vezes que entrei em um automóvel de jogador, os CDs que foram tocados eram de músicas brasileiras. A televisão que assistem diária e intensamente é a Globo Internacional, retransmissora dos canais Globo, SBT e Record. Mesmo distantes acompanham as noticias do Jornal Nacional e principalmente as novelas das oito e o programa de Sílvio Santos”, conta Carmen.

A televisão, os DVDs e as fitas cassetes com música brasileira, a Internet, trazem os jogadores imaginariamente e diariamente ao Brasil. “Ou se preferirem, os mantêm no Brasil”, complementa a pesquisadora. Seu estudo comprova que o círculo das mercadorias que consomem reafirma permanentemente a identidade nacional. “O local (Sevilha, Lille, Eindhoven, Le Mans, Marselha, Bruxelas, Alkmar, Tóquio, Toronto, Almelo...) parece contar pouco para esses sujeitos, pois ainda que possam adquirir imóveis, ter filhos, vivem permanentemente com a possibilidade de mudar-se para outro clube, em outra cidade, em outro país.”

Com relação a esta movimentação, o levantamento revela que o retorno para o Brasil, durante ou ao final da carreira, tem sido a regra e, para Carmen, esse fato reafirma a tese de que essa emigração trata-se de fato de uma circulação. Um “rodar” que entre os jogadores tem significado de experiência e de valorização profissional.

Porém, viajar entre fronteiras não significa necessariamente que conheçam os países que visitam. A rotina de viagens é prevista pelo clube e altamente controlada, com pouca margem de tempo para que os jogadores se desloquem nas cidades para conhecer os locais onde estão.

Na avaliação da pesquisadora, os jogadores entrevistados fornecem um exemplo empírico extremo do viver entre fronteiras. Apesar de sua presença física em outro país, continuam vivendo no Brasil, tanto no plano da imaginação quanto no econômico, pois no Brasil mantêm casas, sítios, carros, contas bancárias, investimentos múltiplos e sustentam familiares. “Nesse sentido, são transmigrantes”, denomina Carmen. Mesmo depois de nacionalizados, destaca, eles continuam a se ver como brasileiros e a pensar o futuro como sendo o Brasil. “São cidadãos europeus de direito, sem terem deixado de sentirem e serem percebidos como estrangeiros”.

A Espanha, a França, a Holanda, a Coréia, o Japão ou qualquer outro lugar em que a sua mobilidade no sistema futebolístico os leve a "rodar", é apenas uma passagem, algo que se faz como um trabalho, com sacrifício, para receber a recompensa de prestigio profissional e financeira. “Vivem um exílio voluntário, com a dor que esse termo encerra”, descreve a pesquisadora em artigo que foi apresentado em Lisboa, no colóquio Sport and Migration. O material está acessível em português na internet: Rodar: a circulação dos jogadores de futebol brasileiros no exterior

Saiba Mais
- A maioria dos jogadores entrevistados tinha apenas o primário, cerca de 10% conseguiram terminar o secundário, um havia sido aprovado no exame vestibular (tendo abandonado a faculdade quando se mudou para o exterior) e apenas um formou-se em curso superior.

- Três entre suas esposas concluíram o terceiro grau, mas há uma tendência de que apresentem uma escolaridade maior do que a dos jogadores.

- Todos demonstraram estar conscientes de que a ascensão econômica em suas vidas só foi possível graças ao futebol – atribuem a uma prerrogativa divina o fato de terem ascendido, como se tivessem sido escolhidos: "Tudo o que sou, devo a Deus", "Deus quis assim", "Graças ao Senhor" são frases que pontuam suas falas.

- Praticamente todos os entrevistados empregaram o primeiro dinheiro que receberam para adquirir uma casa para a mãe, ou para fazer uma reforma, quando ela não deseja deixar a vizinhança onde mora, realizando um sonho e devolvendo um pouco do que dizem ter recebido.

- Os altos salários recebidos pelos jogadores na Europa e no Japão não se refletem em consumos ostentatórios de sua parte, como parte da imprensa leva a crer. De fato, seus hábitos de consumo aproximam-se mais os de uma camada média alta do que de milionários que são – não transitam em aviões particulares, não possuem iates ou submarinos, não passam as férias em ilhas particulares, não freqüentam restaurantes de luxo.

- Os que estão em clubes-globais moram em casas espaçosas localizadas em bairros nobres, geralmente os que concentram grande número de jogadores de futebol, porém não há na decoração das casas nenhuma grande extravagância. Continuam a vestir-se como os jovens de sua idade (com tênis, jeans e camisetas, ainda que essas sejam de marcas caras), a comer em casa ou em restaurantes que sirvam uma comida próxima da brasileira, a terem como diversão as salas de bate-papo da Internet (onde se relacionam com familiares, amigos e outros jogadores de futebol), os CDs e DVDs de músicas brasileiras, a TV Globo Internacional, os jogos eletrônicos (especialmente o Playstation da Fifa, disponível também em qualquer lan-house no Brasil).

Nenhum comentário: