terça-feira, 3 de agosto de 2010

Justiça comunitária: entre o ideal e a realidade

Com os desdobramentos advindos da queda do Muro de Berlim, muita gente que sinceramente aspirava a um mundo mais justo basculou da idealização da centralização estatal para a idealização do empoderamento comunitário. Trabalhos como a tese do sociólogo Boaventura de Souza Santos, defendida nos anos 1970, que incensava as fórmulas de justiça comunitária surgidas na esteira do vácuo da presença do Estado nas favelas do Rio de Janeiro, funcionaram como senha para a necessidade de um novo horizonte.


Entretanto, nem tanto ao céu, nem tanto a terra. Em pleno regime militar brasileiro, Boaventura Santos não poderia imaginar que o populismo irresponsável dos anos 1980 retiraria ainda mais o estado das favelas, abandonando-as ao comando do crime organizado, imensamente potencializado nos anos seguintes pelo avanço do tráfico de drogas e de armas e pela corrupção da polícia. Assim, a idílica justiça comunitária de Boaventura Santos converteu-se no pesadelo dos tribunais do tráfico, que sentenciam milhares de pessoas à morte e à tortura.


A tal justiça comunitária também vem provocando horríveis distorções pelo mundo afora. No Paquistão, tribunais tribais condenam mulheres adúlteras à morte por apedrejamento, chocando até mesmo as autoridades judiciárias do próprio país. Mas os mais recentes escândalos da justiça comunitária eclodiram mais perto, na vizinha Bolívia.


Compromisso de campanha do Presidente Evo Morales, da etnia aimará, a reforma constitucional de 2009 passou a considerar a Bolívia um estado “plurinacional”, prevendo autonomia para as áreas indígenas. Num país marcado pelo histórico de brutal centralização político-administrativa, a medida pareceu a muitos um feliz avanço. No que diz respeito à justiça, as comunidades ganharam o direito de exercer funções jurídicas, desde que respeitando o limite do “direito à vida”. Os índios podem agora julgar os acusados de crimes cometidos em suas terras, prolatando sentenças completamente livres de apelação para a Justiça comum. Na prática, entretanto, institucionalizou-se o estado paralelo e escancarou-se a porta a notáveis abusos.


Em maio, quatro policiais bolivianos, acusados de roubo e de extorsão, foram sentenciados ao espancamento até à morte na localidade de Uncia. Foram enterrados de bruços, para que seus espíritos - como reza a tradição local - não tentassem se vingar. Os responsáveis alegam que apenas aplicaram a justiça comunitária. E o frágil estado boliviano não consegue nem mesmo fiscalizar a exigência de respeito à vida, não observada no caso em tela. Já penas como amputação de membros, tortura e açoitamentos não seriam de modo algum inconstitucionais.


Independentemente da culpa ou não dos acusados, que sequer tiveram direito justo à defesa, o bárbaro assassinato é um retorno à justiça medieval, como se todas as conquistas do liberalismo moderno simplesmente não existissem. No Brasil, por exemplo, até os códigos penal e de processo penal de inícios dos anos 1830, vigia o vetusto Capítulo V das Ordenações Filipinas, farto na cominação de penas atrozes, contra o corpo, a alma, a memória e a família dos réus.


Há alguns meses, todos acompanhamos pelos noticiários o drama de turistas, dentre os quais havia brasileiros, que foram feitos reféns por índios em uma estrada boliviana. Com todo o respeito e reconhecimento pelos séculos de espoliação e barbaridades a que foram submetidos os índios bolivianos, uma coisa não pode justificar a outra. As barricadas, com graves conseqüências às liberdades das pessoas, tornaram-se comuns na Bolívia plurinacional: faces corriqueiras da justiça feita pelas próprias mãos. Analistas temem, ainda, que esta autonomia oportunize a emergência de relações promíscuas com o crime organizado, dando azo a atividades ilegais de dimensões ainda maiores.


Antropólogos garantem que a justiça indígena tradicional é realizada por um conselho de anciãos e desconhece a pena de morte e o supliciamento dos réus. Considerando não estarem esses antropólogos iludidos, então talvez a justiça indígena já esteja sendo confundida com linchamentos e sendo usada como guarda-chuvas para garantir impunidade a tormentos perpetrados pelo crime organizado. Mais ou menos, quem sabe, como se deu com os tribunais populares de Boaventura Santos, agora convertidos em tribunais do tráfico.


E, aliás, está em aberto a questão: seriam os quatro policiais brutalmente assassinados efetivamente corruptos, ou estariam eles combatendo crimes executados pelos indígenas, sendo esta a razão para o destino que lhes coube?


Casos como estes não são isolados. Como mostra matéria no Estado de São Paulo, de 11 de julho, em 2004 uma turba queimou o prefeito de Ayo Ayo em praça pública e em 2008 outros três policiais foram linchados em Epizana. Só em 2009, foram 30 linchamentos e 77 tentativas frustradas em território boliviano. Calcula-se que esses linchamentos sempre aconteceram, mas estariam se tornando bem mais freqüentes após a Constituição de 2009.


Na prática, o idílio da justiça comunitária na Bolívia parece estar se convertendo em fonte de novas brutais injustiças. E a autonomia indígena parece proclamar a face do desgoverno nacional, expondo o estado boliviano em toda a sua imensa fragilidade estrutural.

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