Grupos étnicos culturais
No
seio das ciências sociais contemporâneas, em especial da Antropologia Social, a
noção de"identidade étnica" é imediatamente remetida ao contexto
social no qual se privilegiam a multiplicidade, a diferença e o contraste
culturais entre os grupos humanos. Basicamente, as teorias antropológicas
relativas à identidade étnica — aquela que se refere a grupos sociais e
comunidades humanos — podem ser subsumidas pela idéia de irredutibilidade.
Assim, a definição da noção de identidade é certa dimensão de
algo"irredutível", do qual todo grupo humano seria portador no
decorrer de sua história de sobrevivência.
Na versão
contemporânea da teoria da identidade, o outro é um "semelhante"
apenas enquanto"ser humano", mas definido como"diverso"
e"desigual" no jogo das relações interétnicas desencadeado pela
história dos contatos culturais entre as diversas sociedades humanas. O
contexto destas conjunturas de contacto intercultural extremamente
diversificadas engendra modalidades de interação interétnica altamente
variáveis que devem ser desvendadas cuidadosamente pelo pesquisador. E, em
termos ideais, caberia então ao antropólogo, um investigador das dimensões
étnicas e culturais das populações humanas, determinar quais as condições
necessárias e suficientes para explicar o processo de engendramento (ou
as"causas") destas"diversidades".
O problema está
colocado, mas muito pouco se fez para aprofundá-lo no sentido de transcender o
nível meramente descritivo das contribuições. As teorias da identidade social,
da maneira como têm sido desenvolvidas, não chegam a propor hipóteses para os
processos mais profundos que possam explicar o"por quê" da escolha de
certas"marcas" pelos grupos humanos nas suas diversas contingências
históricas. A sua descrição minuciosa, bem como o diagnóstico relativo aos
limites do seu emprego constitui tarefa apenas necessária, mas não suficiente,
para explicar o processo de sua emergência ou"criação" social.
Portanto, no
contexto das teorias antropológicas, a"marca" emerge como algo
arbitrário, fortuito, não explicável ao antropólogo atual, assinalando
dimensões culturalmente construídas e reconstruídas pelos grupos étnicos no
intuito de sua especificidade frente a outros grupos com os quais mantêm
contatos sociais.
Um dos a priori da
Antropologia Social é que cada sociedade, ao escolher a sua marca étnica,
escolhe, por meio dela, um certo sentido para a construção das suas condições
de vida social em um cenário de sobrevivência mais amplo. Neste campo de
estudos, ressaltam as contribuições de Barth (1969), que, ao estudar os
fenômenos de identidade étnica, associa as"marcas de identificação" a
certas condições do ambiente físico. Segundo este mesmo autor, trata-se de
analisar a competência que possuem os diversos grupos étnicos que se interligam
em intrincada rede de relações em determinado território, na obtenção de
recursos escassos de ordem material, competência esta que fundamentaria uma
possível explicação da emergência das"marcas" de identificação
étnica. Fato é que a maioria dos estudos antropológicos relativos a relações
interétnicas não aprofundou a pesquisa e a interpretação para permitir um
cotejo com os resultados obtidos por Barth, limitando-se a inventários
descritivos de cunho histórico, sem nenhum intento comparativo.
Outra abordagem do
problema das"marcas" étnicas consiste em relacioná-las com
modalidades de controle social e político, desenvolvida principalmente por
Balandier, que propõe a análise da multiplicidade de manifestações
da"situação colonial", contextualizando a orientação geral da
dinâmica das relações interétnicas. Apesar de se tratar de um enfoque de cunho
sócio-econômico-político mais abrangente, Balandier não aprofunda possíveis
aspectos micro-sociais e ecológicos do problema das"marcas",
integração metodológica que ainda está por ser realizada. No Brasil, Cardoso de
Oliveira, por exemplo, propõe a sua teoria das interrelações de grupos étnicos,
baseada na idéia da natureza contrastiva de grupos étnicos, tais como certos
segmentos da sociedade nacional brasileira e comunidades tribais indígenas. Tal
natureza contrastiva entre os sistemas sociais envolvidos no contato inter
étnico é concebida como sendo a expressão de um processo de"fricção
interétnica", cuja descrição pormenorizada infelizmente não permite a
elaboração de hipóteses relativas à emergência das"marcas" que
afloram ao nível da consciência dos envolvidos.
Em suma, o problema
teórico da criação de"marcas" ainda prescinde de hipóteses que possam
explicar a sua emergência, embora disponhamos de numerosos trabalhos que,
partindo delas, partem, aprioristicamente, daquilo que está por merecer uma
explicação. As"marcas" criadas por cada grupo étnico para classificar
os tipos de relação com o mundo humano mais distante, o mundo dos representantes
de outros grupos étnicos, são construçõles culturais que nos remetem a
processos psico-sociais muito pouco explorados e que, entre outras coisas, têm
sido investigadas sob o tema de"identidade social". Quer nos parecer
que tais estudos de"identidade social" ainda não tenham sido
devidamente considerados pelos estudiosos da"identidade étnica", o
que explica o seu caráter eminentemente descritivo. E, mais do que isso, na
conjunção entre o antropólogo social e representantes de outros grupos étnicos,
parece não se levar em conta a especificidade de interpretação
de"identidade social" e de"identidade étnica" não só
pensada, mas vivida pelo próprio pesquisador.
Dadas tantas
lacunas, é compreensível que os avanços teóricos sejam parcos e pouco
freqüentes. Como se o antropólogo social pudesse eximir-se do estudo mais
aprofundado de seu próprio sistema de referência cultural apenas pelo fato de
se considerar, em termos puramente ideológicos, acima das contingências
desfrutadas por qualquer ser humano...
Fato é que dispomos
apenas de uma cobertura fragmentária e pouco sistemática destas diversas
teorias de"identidade social" e de"identidade étnica"
envolvidas pela conjunção de representantes de grupos étnicos diversos, estado
de coisas que está a pedir novos esforços de pesquisa e teorização.
Tais lacunas podem
ser igualmente observadas a partir da apresentação do material coligido para a
compreensão das idéias relativas à identidade social e à identidade étnica dos
índios Bororo do Mato Grosso, tal como se verá a seguir.
Esboçando, de modo
muito resumido, as idéias que têm os índios Bororo a respeito da identidade
social, esta, segundo o que revelam as pesquisas de campo, deve ser entendida
como um processo iniciado por meio da outorgação de um ou mais nomes pessoais
ao ser humano enquanto bebê. Receber um nome significa receber uma identidade,
um"rosto" moldado em um corpinho ainda mole. Portanto, o
recém-nascido não representa, como entre nós, uma entidade social dotada de
alma, coisa que, entre os Bororo, só acontece com a cerimônia de nominação dos
bebês.
A análise do sistema
de nomes pessoais e títulos honoríficos entre os Bororo revela que a outorgação
de nomes a crianças e a adultos significa outorgar-lhes fragmentos de uma
entidade maior, um ancestral clânico, que representa uma unidade detentora de
nomes pessoais inspirados em feitos míticos e aspectos cerimoniais com ele
associados. Os nomes possuídos por cada ancestral ou"casa cerimonial"
associam-se a danças, pinturas faciais e corporais, cantos e mitos, além de
primazias e privilégios na distribuição de recursos materiais nobres, tais como
penas de aves e ornamentos plumários.
Cada"casa
cerimonial", por sua vez, associa-se à idéia de"dinastia"
ou"mansão" de famílias nobres em nossa tradição histórica européia. E
cada unidade deste tipo, de cunho eminentemente cerimonial e político, preside
o funcionamento de uma ou mais"casas-habitações" ou unidades
domésticas que abrigam os seus representantes (no caso, mulheres de mesmo clã e
sub-clã, visto tratar-se de uma sociedade matrilinear uxorilodal, isto é, onde,
após o casamento, o marido vai morar na casa da esposa que tende a morar com a
sua mãe).
Pelos nomes que
recebe, cada indivíduo humano possui um vinculo especial não apenas com a
sua"casa" de origem ou de"adoção clânica", mas também com
as"casas" de seus padrinhos encarregados de oficiar durante a sua
cerimônia de nominação. Tais vínculos expressam-se também ao nível da vida
cotidiana, permeando padrões de distribuição de comida, visitas, casamentos e
outras formas de solidariedade. O ciclo de vida de cada ser humano é concebido
por um processo de outorgação gradativa de vários nomes, em diversas etapas de
vida, associados com diversas partes do corpo: lábio inferior (perfurados para
o nominando bebê do sexo masculino), lóbulos das orelhas (perfurados para
jovens de ambos os sexos), pênis (amarrados com estojos penianos) e narizes
(cujos septos eram perfurados para os pais de bebês do sexo masculino pelos
Bororo do passado), num pontilhar de nomes que se estende desde o primeiro
batismo do bebê até a consumação da procriação de um novo varão por parte do
jovem adulto.
Na língua Bororo,
dar um nome à criança corresponde à expressão ie-do, "fazer
rosto" (uma identidade social ou máscara para a vida social — uma persona,
no sentido de Jung e de Radcliffe-Brown), cerimônia esta em que se pinta
com urucu o rostinho da criança, realçando-o todo vermelho, em contraste com o
branco da penugem que lhe envolve a cabeça, tronco e bracinhos. Já o"fazer
orelhas" de jovens de ambos os sexos envolve, além da sua perfuração, a
outorgação do direito de usar brincos próprios ao sub-clã a que pertence o
iniciando, associado, entre outras coisas, ao longo processo de aprendizado das
tradições orais próprias a cada clã, expressão das normas jurídicas do mundo
social Bororo.
Durante os ritos de
iniciação pubertária masculina, os jovens recebem estojos penianos que lhes dão
o direito de exercer relações heterossexuais com mulheres"esposas",
isto é, mulheres com as quais é permitida a procriação. O próprio termo Bororo
para"esposa" — oreduje (aquela que está para fazer filho) —
denota a importância do aprendizado do jovem realizado por ocasião do
nascimento do seu primeiro descendente, quando ele se envolve no provimento da
dieta adequada para sua esposa, abstenções alimentares e contenção sexual
visando beneficiar o recém-nascido. Crescendo bem, os parentes matrilineares da
mãe decidem então outorgar um ou mais nomes ao bebê, que, quando de sexo
masculino, permite que o pai possa receber um furo no septo nasal para ostentar
belas penas e enfeites, em suma, belos"narizes" cerimoniais.
No caso específico
da cultura Bororo, a estratégia de outorgar nomes, muito difundida entre as
diversas sociedades tribais brasileiras, é complementada por uma prática
cerimonial inédita: após a morte de um indivíduo, seja ele homem, mulher,
adulto ou criança, ele recebe um"nome de morte" que será usado também
por outro indivíduo, um vivo, de sexo masculino, designado para ser o
seu"substituto".
O"substituto"
representa o finado durante os seus funerais, dançando por ele, lavando-lhe os
ossos para untá-los com resinas e urucu, para depois enfeitá-los com plumas e
dispô-los em um cesto-ossuário a ser enterrado fora da aldeia. Além de tantas
tarefas cerimoniais, o"substituto" também deve caçar um animal de
desagravo, a ser oferecido aos enlutados como compensação à grande perda por
eles sofrida. Em troca, o"substituto" recebe direitos vitalícios à
comida cerimonial preparada por estes em homenagem ao morto considerado. Na
medida em que o"substituto" recebe um nome e o direito de usar e
fabricar alguns enfeites do clã do seu morto, ele passa a ser adotado
ritualmente pelo clã enlutado, tornando-se um"parente"
(um"filho" ritual) dos parentes do seu finado. Cabe ressaltar que o
nome recebido pelo"substituto" é sempre um nome diverso (embora
pertencente à mesma unidade detentora de nomes ou"casa cerimonial")
daquele do morto, eclipsado por um longo tempo ("até que a terra tenha
comido os ossos"), embora se espere que ele se desincumba das mesmas
obrigações sociais exercidas pelo finado.
Instaura-se, assim,
um ciclo de perpetuação de um indivíduo, lembrado enquanto fôr vivo o
seu"substituto" que, após a sua própria morte, será lembrado por
outro vivo, o seu próprio"substituto". Deste modo, perpetuam-se as
funções cerimoniais funerárias ligadas a identidade sociais eclipsadas pelas
mortes, identidades sociais desaparecidas que configuram uma cadeia de finados
cerimonialmente entrelaçados. Na medida em que a escolha de um"substituto"
sempre recai sobre um homem caçador "não parente" do morto, e na
medida em que o parentesco Bororo é concebido em termos da pertinência dos
parentes a uma mesma metade matrilinear (cada metade é formada, por quatro clãs
matrilineares, por sua vez subdivididos em vários sub-clãs ou"casas
cerimoniais") o"substituto" acaba por ser escolhido entre os
caçadores adultos da outra metade à do morto. Substituindo-se uns aos outros,
tais cargos cerimoniais de"substituição" definem a especificidade do
culto aos mortos entre os Bororo, expresso, de maneira exuberante, por
prolongados cantos, danças, sofisticada arte plumária e refeições comunitárias,
refeições de"almas" de mortos, já vingados, que vêm, alegremente,
receber o seu quinhão de comida cozida dentro da choupana dos homens, pelas
bocas dos seus"substitutos".
Cada"substituto",
em termos de sua identidade social, representa na verdade um"outro" (iadu)
carregando consigo, tal como carrega a cabacinha mortuária que simboliza o
finado, os direitos e os deveres por um"outro", um finado,
fisicamente morto, anônimo e ausente da aldeia, mas, espiritualmente vivo,
nominado com um nome de morte e, cerimonialmente, representado pelo seu
substituto. Os nomes dos mortos não devem jamais ser pronunciados, nem guardados
os seus pertences que são incinerados, enterrados, jogados no rio e
enclausurados com seus ossos. A vida dos mortos corresponde a uma outra
dimensão da existência humana em que a noite é dia entre os vivos e o dia é o
frio e a escuridão noturna dos sobreviventes. Os vivos cantam, falam, tocam os
instrumentos e possuem o fogo, enquanto os mortos apenas gemem e dançam como
animais moribundos, cegos e desprovidos de fogo; calor e alimento cozido que,
nas suas andanças irrequietas vêm de tempos em tempos procurar junto aos vivos,
engendrando o ciclo periódico de rememoração dos mortos das aldeias.
Evidentemente,
torna-se difícil a compreensão e a vivência deste tipo de concepção da
identidade social por parte de qualquer pesquisador ocidental. Engendram-se
fusões pouco habituais entre categorias de classificação que, ao nosso ver, são
inconfundíveis:"mortos" /"vivos","seres humanos"
/"animais","corpo" /"alma", etc.
Interpretando a
teoria da identidade dos Bororo, existe a possibilidade de assumir que, dentro
de cada ser humano vivo, há a conjunção temporária de dois princípios que o
ligam ao cosmo: um associado às almas humanas, à identidade social expressa
pelos nomes pessoais, cantos, pinturas, mitos e danças, sinteticamente expresso
pela nossa concepção de Cultura; outro associado à vida animal e ao mundo dos
gostos, desejos e demais paixões incontroladas levando a comportamentos
anti-sociais e a infrações das normas de convivência social. Assim, haveria uma
dualidade interna a cada indivíduo vivo, dotado de um corpo que ainda não se
desintegrou (bi-bokwareu = morto não, vivo): a sua"alma"
humana ou sua essência social, e outra"alma" animal, representada por
tendências bio-psicológicas que compartilha com espécies animais e vegetais que
observa no seu ambiente.
Com a morte,
desfaz-se o tênue equilíbrio entre estes dois princípios que fundamentam o
psiquismo do Bororo vivo, equilíbrio temporário redefinido corporal,
psicológica e socialmente pelas diversas etapas do seu ciclo de vida, já que,
com cada novo nome recebido, o Bororo altera a aparência do seu corpo (por
"furos" e enfeites novos, amarrações, cintos, etc. que sinalizam o
seu"estado"), bem como se esperam dele novos padrões de comportamento
social. A morte do Bororo é predominantemente explicada por parte dos Bororo da
atualidade pela influência, sedução e atuação de espíritos designados de Bope
("coisa ruim"), que tomam conta do Bororo de dentro para fora,
alastrando-se pelo seu corpo e sua maneira de viver, a ponto de aproximá-lo do
mundo dos animais, que desobedecem aos preceitos morais da comunidade.
O bebê possui um
pouco de Bope que deve ser mantido sob controle pelos seus genitores por
meio de rigorosas prescrições ligadas ao sexo e à alimentação, cuidados rituais
e espirituais estes reforçados pela atuação dos padrinhos de batismo do bebê
que, pelo nome, é associado a um ancestral clânico antigo e benevolente (Aro
marigudu = finado morrido há muito tempo) e passa a ter dentro de si um
pouco de"alma humana" (Aroe) e um pouco de"alma
animal" (Bope), o início de um pequeno sistema de equilíbrio
psíquico redefinido e ampliado no decorrer do seu ciclo de vida.
E este processo
termina quando Aroe (a alma humana) é roubado e retido fora do corpo do
Bororo, coisa por vezes feita por algum feiticeiro, que abre caminho para os
avanços de Bope (a alma animal).
Após a agonia e o
desenlace, cabe à comunidade dos sobreviventes cuidar primeiro dos aspectos
tangíveis do finado considerados altamente perigosos (Bope), razão pela
qual são rapidamente emplumados e rigorosamente isolados. O corpo, envolto em
esteira, é sepultado no meio da praça central da aldeia para que logo se possa
lavar os ossos, livres das carnes estragadas, sem pele. A casa é queimada junto
com alguns dos objetos do morto. Enquanto isto, dentre os aspectos Aroe do
finado, o seu nome pessoal não pode mais ser pronunciado, entrando em longo
eclipse enquanto os enfeites plumários e demais adornos cerimoniais são
juntados apenas aos ossos depois de lavados, pintados e enfeitados de plumas. A
lavagem e decoração dos ossos é sempre tarefa do"substituto" que
junta ossos, enfeites, plumas, sangue e lágrimas dentro do cesto funerário,
para costurá-lo e enterrá-lo em algum lugar longe da aldeia. E, bem longe da
aldeia também, ele caça um animal de desagravo para trazê-lo como oferta aos
enlutados e assim redimi-los do luto. Traz-lhes couros de onças, jaguatiricas,
pumas, lobos ou penas de grandes aves de rapina, espécies vistas como
encarnações temporárias dos finados (Bope). Uma vez abatido, o animal de
desagravo é carregado para a aldeia, onde é depenado ou esfolado, à semelhança
dos mortos humanos conservados apenas pelos ossos. Deste modo, o animal de
desagravo de Bope é transformado em Aroe, um belo couro de onça
pintada, um belo diadema de penas de águia ou um colar de dentes feito em
memória a um falecido. De modo inverso, os ossos sepultados dos finados, de Aroe
se transformam em Bope, pois as áreas de sepultamento entre os
Bororo são respeitadas como lugares interditos à caça e à pesca,
constituindo-se, portanto, em reservas de regeneração de vida animal, espécies
que durante o seu ciclo vital se subordinam aos Bope. Tais espíritos
associados à abundância e ao crescimento de espécies animais e vegetais úteis
aos Bororo são igualmente a manifestação dos finados Bororo já vingados que,
satisfeitos com os seus parentes vivos, benevolamente lhes enviam animais,
frutos e raízes para a sua alimentação, pelo que são lembrados por ocasião das
refeições comunitárias. Em suma, pelos encargos cerimoniais e pelo abate do animal
de desagravo, os "substitutos" representam a interligação de seres
humanos mortos e vivos e dos mundos humano e não-humano. Reinstaura-se um novo
equilíbrio rompido com a morte do Bororo que, após o abate do seu animal de
desagravo, é regenerado em novos níveis — um equilíbrio entre o finado, já
integrado no reino dos mortos, e os parentes sobreviventes ressarcidos pela
integração de um novo parente, o"substituto", e belos troféus de
caça, expressão de um novo controle sobre a animalidade desenfreada do finado,
razão pela qual é possível superar o luto — emocionalmente associado à raiva e
à vergonha pelos atos impensados do parente morto — e voltar à vida de rotina
reconstruindo a casa; trabalhando na roça, pesca, caça e coleta, preparando a
comida e relacionando-se sexualmente, reengendrando o fluxo da vida.
Estas observações
constituem, ao meu ver, um pano de fundo mínimo indispensável à compreensão
daquilo que os antropólogos podem aprender com os índios Bororo sobre o
problema da"identidade social". É preciso não esquecer que as
eventuais"teorias" sugeridas pelos pesquisadores não passam de
representações criadas por estes dentro de condições cognitivas e afetivas
muito particulares, e pouco controladas, projetadas como válidas para explicar
certas reações, verbalizações e comportamentos de outros seres humanos. Se tais
construções correspondem a processos reais de identificação social atuantes no
psiquismo destes outros seres humanos é uma outra questão, por sinal impossível
de ser resolvida. Trata-se sempre de construções imaginárias, hipóteses de
trabalho a serem mantidas enquanto tiverem eficiência explicativa suficiente
para não serem descartadas. E, no contexto da Etnologia e da Antropologia
Social e Cultural, tais construções tendem a ser altamente idiossincráticas,
dada a especificidade das propostas, métodos de trabalho e história de contato
interétnico altamente variável de um para outro pesquisador.
No âmbito das
relações interétnicas, os Bororo classificam como marege a outros índios
ou índios não Bororo, Kaiamo-doge e Koroge a inimigos humanos, e Barae
e Tabae aos civilizados de cor branca e preta, respectivamente.
Segundo um mito
Bororo, os"civilizados" foram criados pelos Bororo. Um ancestral
muito estúpido teve a infeliz idéia de, em se sentindo muito só, bater com a
sua vareta mágica para fazer aparecer os primeiros civilizados. Como estes
sentissem fome e frio, bateu-lhes mais uma vez a vareta para criar-lhes animais
e espécies domésticos, além de madeiras para as suas casas.
Eis uma hierarquia
de dominação expressa no mito Bororo que nos apressamos em inverter pois,
segundo a concepção dos antropólogos, os índios Bororo é que são os dominados
pelos representantes da civilização! A validação da interpretação Bororo ocorre
por ocasião da realização dos funerais, quando os chefes de postos,
missionários, pesquisadores e demais Barae são obrigados a obedecer às
determinações dos chefes cerimoniais Bororo.
Quando a convivência
entre Barae e Bororo é mais prolongada, os primeiros tendem a ser integrados
como subalternos dos homens mais velhos da aldeia, chefes clânicos de prestígio
social variável, por meio da política de outorgação de nomes.
A autora do presente
trabalho foi adotada por um chefe de pouco prestígio clânico, mas de grande
prestígio pessoal. E, dentro deste clã, foi associada a um ancestral visto como
"irmão menor". Portanto, enquanto"irmã menor" ela
desfrutava, em termos de vínculos internos a sociedade Bororo, um prestígio
menor do que alguém considerado"irmã maior" ou"irmã mais velha","mãe"
ou"avó materna", dentro da mesma"casa" (ou sub-clã). Junto
com o nome, ela recebeu também o encargo vitalício de zelar e cuidar dos seus
parentes próximos, em especial no que se relaciona a recursos materiais e
presentes. Tais expectativas e exigências visam, antes de mais nada, fortalecer
o prestígio do"nominador", o chefe Bororo que tomou a iniciativa de
nominá-la e que, em troca, espera a satisfação de suas ordens e desejos.
No passado, durante
os conflitos entre Bororo e fazendeiros ou militares, quando derrotados, os
Bororo passavam a se designar pelo nome do seu dominador. O pacto de paz entre
o então coronel Rondon e o grande chefe cerimonial e político Cadete foi
celebrado pela oferta de uma farda ao grande chefe Bororo, fato que inspirou o
seu apelido"Cadete". Assim, observa-se que o Bororo derrotado
ou"pacificado" recebe, se não for um nome, como ocorreu após a
derrota sofrida pelos Bororo Ocidentais por parte dos civilizados da área que
os reduziram a um punhado de poucas pessoas, alguma insígnia do seu dominador
(no caso, a farda de Cadete). Atualmente, antropólogos e chefes de Posto
orgulhosos de terem recebido nomes entre os Bororo, portadores de insígnias e
nomes dos Bororo, acabam se transformando, na verdade, em subordinados"civilizados"
dos seus parentes rituais...
No contexto
das"marcas étnicas" selecionadas pelos Bororo para construírem a sua
identidade no contexto das relações intertribais e interétnicas, estes optaram
por se apresentarem neste cenário mais amplo como sendo"os grandes
conhecedores dos funerais", dimensão esta que não logrou ser disputada por
nenhuma outra tribo brasileira. E os Bororo se afirmam como os detentores
exclusivos de algo muito exclusivo: a prática do enterro secundário, padrão
funerário este bem menos desenvolvido e mesmo desaparecido entre outras tribos
indígenas brasileiras que o possuíam no passado. E mais do que isto: a prática
do enterro secundário, feito por um"substituto" todo ornado e
emplumado quando dança como"alma nova", engendrando um tipo de
sociabilidade vitalícia sui generis (respeito, trocas de bens nobres,
etc.) com os parentes clânicos do morto, que não reencontramos em nenhum outro
contexto tribal.
A maioria absoluta
dos Bororo da atualidade continua a participar entusiasticamente dos funerais
que, apesar de evidenciar acentuadas mudanças nos padrões de manifestação
material (o desaparecimento quase total da cerâmica, o desaparecimento de
algumas cerimônias, dado um acentuado decréscimo populacional e a falta de
matérias-primas por vezes insubstituíveis, a introdução da cachaça, do mate,
açúcar, fumo, café, roupas, cobertores, etc.), continuam aglutinando grande
número de Bororo participantes e visitantes nas aldeias enlutadas. Apesar de
todas as pressões em contrário, os Bororo continuam afetivamente ligados à
realização destes funerais e ao mundo cultural ligado ao prestígio dos heróicos
caçadores, os"substitutos" dos finados, fazendo florescer a vida
societária dos Bororo vivos, jorrando belos enfeites, danças, cantos e comidas
perfumadas nas praças de suas aldeias.
Como esta
convivência afetou a autora enquanto pesquisadora e enquanto ser humano?
Constato que durante os primeiros anos de minha pesquisa de campo, eu
desfrutava de condições melhores para realizar um trabalho de cunho acadêmico.
Talvez pelo fato de me sentir mais segura por permanecer controlada e mais
afastada dos meus"informantes", relutando ao processo inexorável de
aproximação a estes "outro", coisa que viria a tentar nos períodos de
convivência posteriores. Tal aproximação é penosa, pois implica em transcender
a si mesmo, aos seus gostos e confortos, para tentar se aconchegar a estes
outros misteriosos seres humanos,"amigos" talvez, ainda distantes,
mas suficientemente instigantes para atrair-nos...
Constato que as teorias
elaboradas pela Antropologia Social têm muito pouco da profundidade necessária
para captar os processos psico-sociais de"outros" e de"nós
mesmos", constantes diálogos que subjazem às manifestações aparentes
daquilo que convencionamos designar de"relações interétnicas", ou
então,"questões de identidade social". É evidente também que as
teorias propostas referem-se a reflexões esquemáticas e simplificadoras de
referenciais ricos e complexos de vivência e pensamento humanos.
Minha convivência
cumulativa e cada vez mais intensa e calorosa com os Bororo me convenceu que
seria útil tentar captar novas dimensões de realidade por meio de referenciais
baseados na sensibilidade e na intuição, antes de tentar sujeitá-las à frieza
conceituai indispensável a qualquer ciência. E constato que a esta altura, após
uma história pessoal de contato por vinte anos, eu mesma me sinto com uma
identidade um tanto fragmentada, intensificada inclusive por minha origem
européia. Além do longo processo psicoterapêutico, que se revelou como
caminhada decisiva na busca de minha própria identidade, constato ser
necessária uma prolongada reciclagem teórica e filosófica para dar continuidade
à minha atividade como pesquisadora. A certeza inicial de um longo caminho de
incertezas futuras é representada pela idéia de que as questões ligadas à
identidade social ou à identidade étnica não podem ser explicadas ao nível de
meras descrições de circunstâncias históricas, a não ser quando forem referidas
a processos psico-sociais mais profundos, hipóteses parciais relativas a uma
natureza humana, objetivo este infelizmente relegado como secundário pela
maioria dos antropólogos da atualidade.
Caberia pois um
esforço conjunto no sentido de não se aplicar apenas teorias já propostas por
cientistas sociais, mas de criar novas teorias, mesmo que se considere que
entre nós haja falta de amadurecimento intelectual quando nos comparamos aos
cientistas do primeiro mundo. Construir um discurso acadêmico convincente pode
ou não coincidir com um discurso de natureza científica, além de que elaborar
um discurso científico pode ou não ser satisfatório para um pesquisador mais
intuitivo e sensível. Retomemos, portanto, com novo vigor, à velha questão da
Antropologia, enquanto uma proposta holística relativa ao seu objeto, a espécie
Homo Sapiens: O que é o Homem? E, ao meu ver, caberia aos antropólogos
da atualidade tomar a iniciativa de buscar novo dados e ferramentas, não apenas
do seu domínio restrito e exclusivo — a Antropologia Social — mas de outros
domínios que encerram fenômenos ainda não suficientemente desvendados pelas
outras ciências humanas (em especial Psicologia, bastante negligenciada pelos
antropólogos), bem como mistérios ainda pouco investigados, segundo o revela a
história das Humanidades, Religiões e Artes de Homo Sapiens.
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