A gravidez
na adolescência
A
gravidez na adolescência não constitui um fenômeno novo no cenário brasileiro.
Acompanhando uma tendência internacional, ela assume, entre nós, sobretudo nas
últimas décadas, o estatuto de problema social, para o qual convergem a
atenção dos poderes públicos, de organismos internacionais e da sociedade
civil. Sociologizar o fenômeno em pauta importa, em primeiro lugar,
identificar as condições sociais e históricas que propiciaram a emergência da
gravidez na adolescência como um problema, os atores que se mobilizam em
torno dele e sua representação atual. Entender a construção social do problema
significa empreender sua relativização. Em segundo lugar, implica responder às
insatisfações com o paradigma analítico dominante e fundar o exame em uma
perspectiva sociológica.
O
projeto GRAVAD propõe-se, assim, a a) subordinar o critério estritamente etário
que informa os trabalhos sobre gravidez na adolescência em prol do conceito de juventude;
b) inserir o estudo da gravidez na adolescência no quadro analítico da aprendizagem
e experimentação da sexualidade com parceiro, considerando-se as
especificidades do que se convencionou chamar de "cultura sexual
brasileira" (Parker, 1991) – sob essa perspectiva, a ocorrência de uma
gravidez na adolescência passa a ser encarada como uma possibilidade na
trajetória juvenil; c) contemplar as profundas disparidades econômicas e
culturais entre as classes no Brasil e a forte segregação entre os papéis
femininos e masculinos que vigora na nossa cultura, discriminando o fenômeno
segundo gênero e classe social. Assume-se que esses dois vetores
modelam as trajetórias juvenis e/ou formas de passagem à vida adulta, afastando
pretensões homogeneizadoras que o conceito de juventude (e do seu
prolongamento) possa fazer supor. As repercussões de uma gravidez na
adolescência, nas biografias dos sujeitos, bem como os fatores que a estimulam
ou, ao contrário, a previnem, devem ser avaliados com base nas considerações de
gênero e das condições materiais e simbólicas de existência onde ela ocorre.
Em
resumo, significa tratar o fenômeno da gravidez na adolescência inserindo-o em
um campo analítico mais amplo: o da sexualidade, gênero e juventude, sempre
especificados à luz das distinções de classe. O compromisso com a sociologização
do tema expressa-se ainda no intuito de contextualizar, relativizar e fazer
ressaltar a heterogeneidade de experiências sob o rótulo gravidez na
adolescência.
A
construção social do problema: fatores e atores
Sob o
termo gravidez na adolescência abriga-se uma faixa etária que, por muito
tempo, foi considerada a ideal para a mulher ter filhos. Como então explicar
que esse mesmo evento seja hoje qualificado como precoce? No Brasil,
ocorreu, nas gerações recentes, um aumento na proporção de mulheres que dão à
luz antes dos 20 anos; esse incremento, contudo, não é significativo por si só
para justificar o caráter corrente de problema social. O trabalho de
Melo (1996) indica que entre 1970 e 1991 houve pouca variação nas taxas
específicas de fecundidade entre as mulheres de 15 a 19 anos no país todo. A
mobilização social em torno de um problema não necessariamente coincide
com um incremento na sua magnitude: transformações processadas no contexto onde
ele se insere são, muitas vezes, mais relevantes para elucidar a preocupação
social que suscita. Por conseguinte, é tão importante examinar o que faz
aumentar o número de gravidezes entre adolescentes no Brasil, quanto
discriminar os fatores instigantes da maior visibilidade do fenômeno.
A
gravidez na adolescência deve ser enquadrada na cena da rápida transição
demográfica brasileira, em curso desde meados dos anos 60, e caracterizada no
final da década de 90 por uma redução expressiva da taxa de fecundidade no
nível da reposição das gerações e pelo aumento da taxa do uso de contracepção
(BEMFAM, 1999; Camarano, 1998a). Entre 1965 e 1995, a fecundidade declina de
quase 6 crianças por mulher para um pouco mais de 2 (Berquó, 1998). A
fecundidade adolescente, ao contrário, vem aumentando sua participação relativa
na fecundidade total, passando de 7,1%, em 1970, para 14,1%, em 1991,
considerando-se que a fecundidade nos demais grupos etários declinou no período
analisado (Bozon; Enoch, 1999). O fato de a fecundidade adolescente ir na
direção inversa da transição demográfica gera o aumento de sua visibilidade e a
torna intrigante.
O
fenômeno também ganha importância no cenário de mudanças operadas na concepção
social das idades4
e do gênero que redefinem as expectativas sociais depositadas nos jovens nos
dias atuais, sobretudo nas adolescentes do sexo feminino. Parecem ser
precisamente as chances abertas às jovens, no que diz respeito à escolarização,
à inserção profissional, ao exercício da sexualidade desvinculado da
reprodução, que fundamentam uma nova sensibilidade quanto à idade ideal para se
ter filhos. Nesse panorama, a gravidez na adolescência desponta como um
desperdício de oportunidades, uma subordinação – precoce – a um papel do qual,
durante tanto anos, as mulheres tentaram se desvencilhar. Essa argumentação
subestima o fato de esse leque de oportunidades sociais não ser igualmente
oferecido para jovens de diferentes classes e, além disso, supõe como universal
o valor ou o projeto de um novo papel feminino.
Em
suma, é como se as mães adolescentes, além de desmerecerem as supostas novas
chances oferecidas aos jovens em geral, se encontrassem em uma dupla contramão:
na das mudanças demográficas e na da emancipação feminina, aumentando, assim, a
visibilidade e também a indignação dirigida à gravidez na adolescência5.
A
representação contemporânea da gravidez na adolescência resulta do concurso de
pelo menos três modalidades de discurso, que foram paulatina e consecutivamente
se imiscuindo no campo. A cada entrada de novos especialistas na cena
correspondem inflexões discursivas no que concerne às determinações,
conseqüências e também à modalidade de risco que dela decorre (Brandão, 2001).
Assim, quando o discurso biomédico foi sucedido, nos anos 70, pelo psicológico,
a ênfase nos perigos advindos de uma gravidez precoce para a saúde
materno-infantil cede espaço aos riscos psicossociais, condensados na categoria
de imaturidade psicológica das adolescentes. Essas tônicas discursivas
se agregam, conforme ilustrado em texto do final dos anos 90: "Além da
maternidade precoce implicar em incapacidade fisiológica para gestar e
incapacidade psíquica para criar, ela apresenta alta probabilidade de levar
a criança a contrair doenças infecto-contagiosas, gastrintestinais, acidentais,
etc." (Camarano, 1998b, p.44, grifo nosso). A essas perspectivas soma-se,
a partir dos anos 80, um arrazoado sobre as conseqüências nefastas acarretadas
pela GA no contexto social. Argumenta-se que o incremento das famílias
monoparentais chefiadas por mulheres implica o agravamento da pobreza dessas
unidades domésticas, redundando no aumento da delinqüência e da criminalidade.
O abandono escolar por parte das mães adolescentes e sua decorrente inserção
precária no mercado de trabalho são também invocados para caucionar a tese de
que, se a GA não instaura uma situação de marginalidade social e econômica, ela
certamente a agrava. São esses discursos que informam a percepção da gravidez
na adolescência no senso comum e na mídia.
Essas
abordagens estão ancoradas em alguns fundamentos compartilhados sobre a
gravidez na adolescência. Versão homogênea, associada às noções de problema
e de risco e construída por meio de uma identificação simplificadora
entre gravidez na adolescência e as mães adolescentes pobres e solteiras, que
passam a ser encaradas como a população-alvo de uma ação profilática. Essa
identificação acarreta uma dupla ocultação: a dos pais adolescentes e a dos
diferenciais de classe. Com efeito, o conhecimento acerca dos pais adolescentes
é limitado e, quando muito, apreendido por meio da percepção de suas parceiras.
Silenciar sobre diferenças no modo das classes sociais lidarem com a gravidez
na adolescência também reforça a versão estereotipada e simplificadora que se
tem do fenômeno. Os discursos dominantes sobre a gravidez na adolescência
comungam ainda a entronização do fator idade, ao qual é dado supremacia
em relação às condições sociais que contextualizam ou conformam o problema.
Deve-se considerar, por último, a identificação corrente entre gravidez na
adolescência e parentalidade ou gestação levada a termo. Esse deslizamento
semântico subestima a magnitude da gravidez na adolescência, porque
desconsidera os casos em que as gestações foram interrompidas de modo
espontâneo ou provocado. Certamente, o fato do aborto ser uma prática ilegal no
país condiciona o uso corrente da categoria nessa direção e dificulta sua
mensuração, mas o tema merece, sem dúvida, ser contemplado no quadro da
gravidez na adolescência6.
Prolongamento
da juventude: a experiência das classes médias
Depreender
o impacto de uma parentalidade adolescente sobre a carreira escolar e
profissional dos jovens pressupõe o entendimento prévio de duas outras
dimensões. Em primeiro lugar, a de como se estruturam os percursos entre jovens
que não tiveram suas biografias pontuadas por essa experiência. A descrição das
trajetórias atende ao interesse de dar ênfase ao modo como esse grupo de
informantes articulava estudo e trabalho no momento da entrevista, de
forma a permitir uma comparação com aqueles que experimentaram a parentalidade
na adolescência. Em segundo, deve-se examinar o fenômeno do prolongamento da
juventude segundo classe social e gênero para especular sobre suas
articulações com a parentalidade adolescente.
A
literatura sobre juventude salienta que mudanças ocorridas no cenário mundial a
partir dos anos 70 tornaram a passagem à vida adulta bem mais complexa
(Galland, 1997)8.
Em contraste com gerações passadas, as transições à vida adulta (a
autonomização familiar-residencial e a escolar-profissional) não acontecem
sincronicamente. É possível mesmo a reversibilidade da autonomia (Pais, 1993),
e o retardamento das conquistas juvenis na carreira profissional redunda em uma
postergação de sua independência material e domiciliar em relação aos pais.
O
fenômeno do prolongamento da juventude tem recebido explicações até
certo ponto divergentes. Salientam-se as novas oportunidades abertas aos jovens
na atualidade, traduzidas pela expansão da escolaridade com vistas a melhor
inserção profissional e social; em outros momentos, invoca-se um contexto
adverso à realização dessas mesmas expectativas, caracterizado pela conjuntura
recessiva, pela contração das chances de ingresso ou de sucesso no mercado de
trabalho e pelo aumento do desemprego. É pertinente indagar em que medida os
fatores estruturais que condicionam o prolongamento da juventude são
expressivos de diferentes condições materiais de existência; e, ainda, se e
como diferenciais de gênero introduzem especificidades na passagem à vida
adulta. Essas questões assumem relevância em uma sociedade como a brasileira,
caracterizada por um fosso significativo, senão intransponível, entre classes
sociais, e pela persistência das diferenças entre o masculino e o feminino.
Essas particularidades socioculturais fazem com que os perfis e trajetórias
juvenis se apresentem, entre nós, como mais heterogêneos em comparação ao
verificado nos países desenvolvidos (Heilborn et al., 2001).
O
modelo do prolongamento da juventude encontra expressão mais clara entre
os informantes das classes médias. A esmagadora maioria dos jovens que não teve
suas biografias pontuadas pela parentalidade na adolescência vivia na casa dos
pais e era economicamente dependentes deles. Embora não se possa desprezar a
contração de oportunidades no mercado de trabalho, as aspirações juvenis
forjadas na atualidade e o prolongamento dos estudos que elas instigam
contribuem para o alongamento da dependência material e residencial desses
informantes. Dando prosseguimento a uma trajetória escolar, em geral sem
interrupções, a maioria dos entrevistados cursa faculdade ou pós-graduação9,
e seus depoimentos valorizam a carreira profissional. O trecho da
entrevista de uma informante ilustra o quanto seu calendário, presente e
futuro, encontra-se marcado por seu projeto escolar e profissional: "Eu
não tenho tempo pra namorado: tô fazendo faculdade e estudando" (moça, 22
anos, solteira, sem filhos, classe média, Rio de Janeiro).
Não há,
em termos típicos, uma seqüencialidade entre a carreira escolar e a de trabalho:
o número de rapazes e moças que nunca havia trabalhado devido a uma dedicação
exclusiva aos estudos mostrou-se pequeno e consistia de jovens provenientes dos
estratos superiores das classes médias. Poucos eram os que, no momento da
entrevista, limitavam-se a estudar. A variável gênero não se revelou
discriminativa. A maioria dos informantes de classes médias sem parentalidade
na adolescência e vivendo com os pais auferia algum tipo de renda própria, seja
devotando-se exclusivamente ao trabalho, seja conciliando-o com os estudos. A
informação relativiza, à primeira vista, a dependência com relação aos pais.
Contudo, o ingresso desses jovens no mercado de trabalho é bem mais tardio do
que o verificado nas classes populares, e a renda auferida é exclusivamente
para uso pessoal, significando apenas uma contribuição indireta para a renda
familiar ("conta daqui de casa, eu nunca paguei" [moça, 22 anos,
solteira, sem filhos, classe média, Rio de Janeiro]). A remuneração obtida
nunca é suficiente para garantir o auto-sustento: muitos continuam a receber mesada
e/ou a ter seus cursos superiores pagos pelos pais. As experiências de trabalho
encontram-se geralmente vinculadas às ambições de carreira e, em muitos casos,
o sentido de experiência10,
de preparação para uma posição profissional futura eram priorizados sobre a
renda obtida. Essas apostas contribuem para retardar a independência material e
residencial dos jovens com relação aos pais:
No
momento recebo, como assistente de pesquisa, uma bolsa de R$ 750,00. Mas, se
minha orientadora conseguir uma verba menor no ano que vem, eu não vou deixar
de trabalhar com ela só porque ela só pode me pagar R$ 250,00. (moça, 22 anos,
solteira, sem filhos, classe média, Rio de Janeiro).
Tô
ganhando mil e pouquinho como analista de sistema. Estou me destacando muito,
graças a Deus: meu trabalho está sendo reconhecido. Mas estou indo bem
devagarinho. Tenho recebido novas propostas de emprego muito boas fora do meu
trabalho, mas eu acho que ainda não tá na hora de olhar pro dinheiro. Tô
olhando mais pra... continuidade. (moça, 22 anos, solteira, 1 filha, classe
média, Rio de Janeiro).
O
ambiente familiar nas classes médias é esclarecedor sobre essa dependência
juvenil. Salvo exceções, os pais concordam com os projetos dos jovens,
dispondo-se a sustentá-los durante o prolongamento dos estudos, quando não a
pagar os mesmos. A continuação da dependência material é simultânea a transformações
no cenário familiar, que redundam em um menor enfrentamento simbólico entre as
gerações. Muitos informantes salientam que o relacionamento com os pais foi
sempre pautado no diálogo, e eles são expressamente qualificados como abertos
ou liberais11.
A dependência material coexiste com a autonomia e liberdade em suas vidas
privadas, o que se evidencia na maior tolerância parental diante do exercício
da sexualidade tanto dos filhos quanto das filhas. Em alguns casos, os jovens
têm acesso à prática do sexo dentro de suas próprias casas: vicissitudes da
vida urbana (violência, criminalidade, etc.) contribuem para a condescendência
e liberalidade paternas, e funcionam como justificativas para essa aceitação.
Esse novo panorama das relações intergeracionais é elemento central no quadro
do prolongamento da juventude, pois não cria estímulos adicionais para
que o jovem deixe a casa dos pais.
Contudo,
seria precipitado concluir que esses jovens não desejam a autonomia financeira
ou residencial. Há casos – sobretudo nas classes médias mais desfavorecidas –
em que a figura paterna reclama do prolongamento da dependência dos filhos,
pressionando-os a ingressarem no mercado de trabalho12.
Mesmo sem essa pressão, são muitos os informantes que manifestam o anseio de se
tornarem independentes dos pais. Mas essa aspiração, subordinada aos projetos
de carreira, não se concretiza a qualquer preço: o padrão de vida e o nível de
conforto que usufruem na casa dos pais são explicitamente afirmados como mais
uma razão para nela permanecerem. Há, assim, um sentido de escolha no prolongamento
da juventude.
A
dependência residencial dos jovens de classes populares
A
maioria dos informantes de classes populares que não teve suas biografias
marcadas pela parentalidade adolescente também permanecia coabitando com
familiares de origem. Porém essa dependência residencial encobre
especificidades que os distinguem dos informantes de classes médias.
As
precárias condições de existência, agravadas pelas contrações de oportunidades
no mercado de trabalho, retêm os jovens das classes populares no seio das
famílias de origem. É significativo o número de entrevistados, sobretudo do
sexo masculino, que estavam desempregados. Nessas circunstâncias, além
de coabitarem com seus pais e/ou parentes, os jovens permanecem economicamente
dependentes deles; mas, tal situação, muitas vezes de longa duração, assume um
caráter mais conjuntural do que estrutural.
Os
condicionamentos de classe têm nítido impacto no modo como se estruturam as
trajetórias escolar e de trabalho. Em contraste com a continuidade e o
alongamento dos estudos dos jovens de classes médias altas, os percursos
escolares das classes populares são muitas vezes breves e marcados por várias
repetências e interrupções. Mudanças de domicílio, precariedade das redes de
ensino público e ainda a violência – seja nas próprias escolas, seja nas áreas
onde elas se localizam – são arroladas como razões para a evasão escolar,
temporária ou definitiva13.
Outros motivos dizem respeito à equação internalidade feminina/externalidade
masculina em relação à casa14.
Esse diferencial de gênero – que se afirma como mais marcante nas
classes populares do que nas médias superiores – justifica a pertinência de
examinar separadamente os depoimentos femininos e masculinos para depreender
como se estruturam as trajetórias escolar e profissional.
Os depoimentos
dos homens não deixam dúvida de que o motivo principal para a evasão escolar
reside em sua inserção, por volta dos 13 anos, no mercado de trabalho. A
dificuldade de conciliar essas atividades (cansaço, falta de tempo),
associada ao forte anseio de ter o próprio dinheiro, deságua em
privilégio conferido ao trabalho em detrimento dos estudos15.
As trajetórias ocupacionais masculinas caracterizam-se pela multiplicidade e
extrema variedade de ocupações, geralmente no mercado informal. Em contraste
com o ideário das classes médias abastadas, o trabalho não se encontra
revestido de uma conotação de realização pessoal, de experiência,
ou de degrau de uma carreira. É entendido, primordialmente, como um meio
de sobrevivência, o qual, tendo em vista o espectro do desemprego, deve ser
mantido independentemente de outras considerações: "Eu não queria estar
nesse trabalho, não; eu estou por falta de opção. Hoje é tão difícil
arrumar emprego... então, o que vier, você tem que segurar mesmo,
senão..." (rapaz, 20 anos, amigado, 1 filho, classe popular, Rio de
Janeiro).
A
vivência de classe incita, por isso, um ajuste contínuo das expectativas e
aspirações desses rapazes. A ambição expressa por muitos sugere um anseio por
um mínimo de estabilidade material: conseguir um emprego, se manter nele e,
como coroamento, ter carteira assinada. O estreito horizonte de
oportunidades restringe a possibilidade de planejamentos futuros e de previsões
a médio ou longo prazo, resultando numa espécie de presentificação da
vida, tal como destacou um informante: "Pra mim, o futuro é o
presente". A idéia de projetos cede lugar à de sonhos:
"Se eu tivesse condições de tentar vestibular e faculdade, eu ia ser um
advogado um dia. E de um advogado, quem sabe um juiz, um dos melhores,
procurando ajudar o trabalhador e não o empregador" (rapaz, 24 anos,
solteiro, 1 filha, classe popular, boy em um escritório de advocacia,
Salvador).
A exterioridade
masculina em relação à casa se expressa também na obrigação moral dos
rapazes em relação aos familiares de origem16.
Em contraste com o verificado nas classes médias, a coabitação com os
familiares não os isenta de comparecer financeiramente no sustento da unidade
doméstica: algumas contas são da inteira responsabilidade dos jovens, a
não ser quando desempregados. Muitos afirmam, além disso, sentir-se
responsáveis pelo bem-estar material de suas mães e irmãos, sobretudo quando
ocupando os primeiros postos na fratria e quando a figura masculina adulta – o
pai e/ou outros parceiros da mãe – se revela ausente ou intermitente. O
imperativo moral masculino em relação aos familiares, conjugado com as
precárias condições materiais de existência, esclarece o perfil predominante
entre rapazes de classes populares, sem filhos: permanecer morando na casa dos
pais, trabalhar (ou melhor, auferir algum tipo de renda) e não estudar17.
As
carreiras escolares femininas revelam-se descontínuas e pontuadas por
repetências, com motivos coincidentes aos alegados pelos homens. Entre os
rapazes, a evasão escolar tende a ser definitiva, mas entre as moças são mais
freqüentes as interrupções e voltas ao universo escolar. A tarefa de cuidar da
casa e dos irmãos menores anuncia-se como uma razão importante, e exclusivamente
feminina, para a evasão escolar: "Interrompi [os estudos] que a mãinha
trabalhava. Mãinha tinha um monte de filhos e eu tinha que tomar conta
deles todos. Então não tive tempo de estudar" (moça, 21 anos, solteira, 1
filho, classe popular, Salvador).
Classe
social e gênero conformam as biografias ocupacionais passadas e presentes: a
assunção precoce de papéis parentais elucida, em parte, o fato de elas
ingressarem no mercado de trabalho mais tarde do que os meninos (exceto quando
alocadas como empregadas domésticas) ou de nunca terem trabalhado fora. A
maioria dessas informantes auferia algum tipo de renda, e a distribuição entre
aquelas que só trabalhavam e as que associavam trabalho e estudos é bastante
homogênea. O perfil das mulheres entrevistadas, sem filhos e morando com
familiares, contrasta com o masculino, este, sim, mais homogêneo. As
dessemelhanças parecem reiterar o diferencial de gênero, característico dos
meios populares, confirmando a interpretação da menor exterioridade das
mulheres com relação à casa, mesmo quando engajadas no mercado de trabalho.
Comparadas aos homens da mesma inserção social, um menor número de mulheres
auferia renda própria, e um maior número encontrava-se na escola. As
trajetórias femininas no mercado de trabalho são menos diversificadas que as
masculinas: várias delas tinham se restringido a trabalhar como domésticas.
Algumas informantes não estavam envolvidas em atividades fora do lar no momento
da entrevista, o que sinaliza para internalidade do gênero feminino em relação
à casa. O depoi-mento de uma entrevistada, que justifica seu não-engajamento em
uma atividade profissional por conta de uma doença de sua mãe, é ilustrativo:
"Eu tive que assumir uma responsabilidade muito grande. Eu não tive
filhos, mas tenho que cuidar dos meus irmãos. Então, a responsabilidade é
dobrada" (moça, 19 anos, noiva, sem filhos, classe popular, Rio de
Janeiro).
O
diferencial de gênero nas classes populares explicita-se ainda no modo como a
família lida com a questão da sexualidade e no grau de autonomia, liberdade e
privacidade que cada um deles desfruta na casa paterna. Sobre a vida afetiva e
sexual dos adolescentes do sexo masculino recai um baixo controle; há indícios
de que pais, mães e/ou outros parentes mais velhos patrocinam, quando não
incitam, o exercício de sua sexualidade, inclusive dentro de casa. Um
entrevistado relatou que sua mãe saía de casa para que ele pudesse manter
relações sexuais com as meninas; outro contou que, aos 14 anos, sua mãe
"comprou Playboy, o Fórum da Ele e Ela e dava pra gente ler lá em
casa"; um terceiro, rememorando sua primeira vez, aos 12 anos,
comentou: "Meu pai me pegou transando em casa, mas fingiu que não viu.
Mas, pô, era a primeira vez do filho dele. Ele tinha que deixar..."
(rapaz, 21 anos, separado, 4 filhos, classe popular, Rio de Janeiro).
Distinto
é o destino das meninas de classes populares: várias informantes reclamam de
uma vigilância estrita exercida sobre suas vidas afetivo-sexuais, que perdura,
muitas vezes, para além da adolescência. O controle provém, sobretudo, dos
homens: pais e irmãos mais velhos. Esse pacto intergeracional masculino pode
engendrar, como resposta, uma aliança entre mãe e filha com vistas a
driblar o controle masculino18.
A relação entre mães e filhas nas classes populares não se aproxima, contudo,
do modelo mais simétrico que vige na classe média abastada. As jovens populares
caracterizam suas mães e/ou pais como conservadores, fechados, antigos,
e um silêncio impera nos assuntos relativos à sexualidade e à biologia feminina
em geral: várias moças lamentaram nunca ter sido informadas sobre ciclo
menstrual.
Sumariando,
a inserção precoce no mercado de trabalho e/ou o exercício vicário de funções
maternais autorizam a conclusão de uma precocidade da vida adulta ou de brevidade
da adolescência nas classes populares, sobretudo quando se toma as classes
médias como parâmetro comparativo. Pode-se, assim, questionar a pertinência da
idéia de prolongamento da juventude nesse contexto. De fato, parece mais
adequado postular um prolongamento da dependência e da reciprocidade entre
todos os membros da família. O peso do diferencial de gênero entre as
classes populares – notável, em particular, quando se as compara com as camadas
médias superiores – sugere que enquanto a externalidade masculina compensa o
prolongamento de seu tempo de permanência na casa paterna, a internalidade
feminina se expressa na precocidade do status adulto pelo desempenho de funções
na casa. Acresce-se ainda que, mais do que ocorre com os rapazes, as
adolescentes encontram-se submetidas a pressões contraditórias no que concerne
ao exercício da sexualidade: enquanto a família tenta contê-lo, o grupo de pares
(e os parceiros) o estimula. A situação é freqüentemente vivida sob a forma de
conflito:
Eu não
tinha vontade de fazer sexo porque eu achava feio. Ouvia sempre minha mãe
dizer: "isso é feio" [Mas] teve uma época que minhas colegas
começaram a dizer que eu era virgem e começaram a me pressionar. Daí eu arrumei
um cara pra ir, e daí eu pensei bem e não fui. Eu dispensei ele. (moça, 20
anos, solteira com união, 2 filhas, classe popular, Porto Alegre).
Pode-se
propor, como hipótese, que as adolescentes populares constituem o grupamento
que, comparativamente aos outros, tem mais estímulos para querer deixar a casa
paterna e/ou para assumir mais plenamente o status de adultas. Um
depoimento, se bem que aludindo a uma decepção, ilustra a idéia:
Com
três meses de casada eu já estava achando meu casamento um saco, porque eu saí
da prisão que era minha mãe – mas que bem ou mal deixava eu ir e vir – e fui
para uma prisão que era meu casamento. (moça, 22 anos, separada do primeiro
casamento e em união consensual com o segundo, 1 filho, classe popular, Porto
Alegre).
A
parentalidade adolescente e suas conseqüências na trajetória
escolar-profissional
Muitas
das considerações sobre projetos e/ou percursos escolares e profissionais dos
informantes que não foram pais e mães na adolescência são igualmente
pertinentes para os que o foram. Cabe agora verificar se a parentalidade
adolescente constitui experiência suficientemente significativa para estipular,
no interior dos quatro grupos considerados, um diferencial relevante na
carreira escolar e de trabalho. O procedimento adotado é a comparação dos
depoimentos dos informantes e a avaliação de como, no momento da entrevista,
se dava a inserção escolar-profissional dos pais e dos não-pais. Parte-se do
pressuposto de que eventuais diferenças obser-váveis entre eles podem ser
creditadas à parentalidade na adolescência. A localização dos sujeitos na
estrutura social é fundamental para discriminar o impacto da parentalidade
adolescente sobre suas biografias; mas os constrangimentos de gênero
desempenham igualmente papel significativo.
O
impacto reduzido da paternidade adolescente
A
paternidade na adolescência pode apresentar pequeno impacto sobre a vida dos
rapazes: a cena mais típica é povoada pelos casos em que eles decidem não assumir
a gravidez e/ou a criança, negando-se a registrá-la e a comparecer no seu
sustento. A justificativa mais comum é a desconfiança da real paternidade19:
eles eximem-se de qualquer responsabilidade questio-nando a retidão moral da
parceira e classificando a relação – às vezes, expost-facto, e não
necessariamente coincidindo com a perspectiva da moça – como fortuita e
estritamente sexual:
Ela
dizia que me considerava namorado, mas eu não. Eu saía com ela, assim,
normalmente quintas e sextas. A mãe dela veio me perguntar se eu era namorado
dela. Eu falei que tava saindo, mas que não tinha nada de sério. Eu até disse
pra ela que eu tinha outra namorada. (rapaz, 18 anos, namorando, sem filhos,
classe popular, Rio de Janeiro).
Quando
perguntado sobre o uso de camisinha com a moça, ele respondeu: "Às vezes,
sim; às vezes, não".
No
universo investigado, há casos em que rapazes de classes médias negaram a paternidade,
ou que dela desconfiaram; contudo, eles são mais recorrentes nas classes
populares20.
Esse diferencial de classe pode ser creditado à inclinação, mais aguçada entre
os informantes de classes populares, de considerar a contracepção como um problema
das parceiras, sobretudo quando são ocasionais. A resposta típica quanto ao uso
do preservativo nesse contexto é: "uso quando dá"21;
muitos se dispõem, no máximo, ao coito interrompido (botar ou jogar
fora) – método considerado responsável por um número significativo de
crianças nascidas no universo investigado22.
A
análise que se segue centra-se exclusivamente nas situações em que o rapaz
decide assumir a gravidez e a criança; essas circunstâncias se dão nos
casos em que há um reconhecimento por parte de ambos os parceiros de que o
engravidamento se verificou num contexto de relação (namoro, noivado ou
casamento). Mesmo restringindo as situações a serem examinadas, persiste uma
notável heterogeneidade no tocante aos efeitos da parentalidade sobre as
biografias juvenis, que, contudo, não impede a formulação de padrões gerais,
melhor discriminados a partir do vetor classe social.
A
paternidade adolescente nas classes médias ocasiona um impacto pequeno nos
projetos e trajetórias escolar e profissional dos sujeitos. Ela não implica, de
um modo geral, nem a suspensão dos estudos, tampouco a aceleração do ingresso
no mercado de trabalho. Alguns informantes são explícitos a respeito: "[o
nascimento da filha] não comprometeu nada: estudei um pouco menos do que eu
estudaria, mas não comprometeu em nada minha formação" (rapaz, 22 anos,
solteiro, 1 filha, classe média, Rio de Janeiro).
A
avaliação é corroborada pela comparação do feitio das carreiras escolar e
profissional dos rapazes pais com aqueles que não foram pais na adolescência. A
maioria dos informantes pais auferia renda própria – e a proporção dos que se
dedicavam exclusivamente ao trabalho e a dos que combinavam essa atividade com
os estudos também revelou ser bastante similar nos dois grupos considerados. Há
indicações de que a paternidade na adolescência não constitui experiência
significativa para modelar e elucidar os percursos educacionais e profissionais
dos sujeitos. Outras evidências suportam a conclusão: muito freqüentemente
o engajamento dos jovens pais no mercado de trabalho precede o nascimento da
criança ou se verifica muito depois dele23.
Os projetos de carreira são mantidos a despeito da experiência da paternidade e
das responsabilidades materiais que ela implica. Tal como observado no grupo
dos não-pais, a inserção profissional dos jovens pais articula-se e
subordina-se às ambições profissionais futuras, e a renda auferida é, na
maioria dos casos, insuficiente para garantir o próprio sustento e o da
criança. Há um número significativo de pais adolescentes que não auferia
nenhuma renda, em virtude da dedicação exclusiva aos estudos. Infere-se que são
as famílias de origem que pagam as contas de uma paternidade
adolescente. Nessas circunstâncias, a assunção da paternidade adquire, antes de
tudo, um sentido moral: veja-se o caso de um jovem que dizia ser
"legal você ter essa responsabilidade" (rapaz, 19 anos, solteiro, 1
filha, classe média, Rio de Janeiro), ainda que nunca tivesse trabalhado. Visto
sob outro ângulo, quem supre, parcial ou integralmente, o hiato entre a
assunção moral da paternidade e o suporte material da criança são os familiares
de origem. Sua presença e apoio no cenário da gravidez e paternidade
adolescente são cruciais. A preservação dos projetos educacionais e de carreira
dos jovens pais é por eles possibilitada.
No que
concerne às classes populares, a maioria dos informantes pais auferia algum
tipo de renda por meio do trabalho, por intermédio de empregos (que,
segundo a definição nativa, distingue-se de trabalho, por fornecer a tão
ansiada carteira assinada), bicos ocasionais (mesmo quando
desempregados) ou, em alguns casos, graças ao soldo do serviço militar.
Comparativamente aos pais de classes médias, um maior número deles trabalhava,
e uma proporção significativamente menor estudava. Essas diferenças são
expressivas do impacto que os constrangimentos de classe, econômicos e
culturais impõem às trajetórias escolar e profissional masculinas. Todavia, as
evidências sugerem que a paternidade adolescente não é fator relevante para
elucidar o modo como se organizam as carreiras escolar e profissional dos pais
populares, haja vista as semelhanças com as trajetórias de estudo e trabalho
dos não-pais.
São
poucos os casos em que os informantes justificaram a suspensão ou a retomada
dos estudos, ou ainda, o ingresso no mercado de trabalho por conta da notícia
da gravidez e/ou do nascimento da criança. E, mesmo quando se noticiava alguma
inflexão nessas carreiras, ela não era necessariamente atribuída apenas à
paternidade:
A
partir do momento em que eu vi que minha vida ia mudar, coisa mais séria, ser
pai de família, eu procurei me interessar mais [pelos estudos]. E também minha
mãe estava me pedindo muito pra eu voltar a estudar. Ela sempre disse que eu
tinha que estudar pra ser alguém; pelo menos um pouco de alguém eu acho que eu
sou hoje em dia. (rapaz, 24 anos, solteiro, 1 filha, classe popular, Salvador).
A
experiência da paternidade pode repercutir nas trajetórias masculinas no
sentido de realçar a necessidade de uma atitude mais compromissada em relação
ao emprego, ou de buscar relações mais estáveis de trabalho. Contudo, as duras
condições materiais em que vivem os rapazes de classes populares – expressas
pelo desemprego, pela obrigação moral para com os familiares e também
por suas reincidências na paternidade adolescente – faz com que, mesmo quando assumindo
a criança, eles compareçam no seu sustento como podem, e quando podem.
Estabelece-se, assim, mais uma coincidência entre esses jovens pais e os das
camadas médias: o reconhecimento da paternidade pode passar antes por uma ordem
moral do que pela atualização do papel de provedor. Nessas
circunstâncias – nada incomuns – são também os familiares de origem que pagam,
integral ou parcialmente, as contas de uma paternidade adolescente.
Em
suma, tanto nas classes populares quanto nas médias, o impacto dos
constrangimentos de gênero e de classe social sobre as trajetórias escolar e de
trabalho masculinas parece ser mais significativo do que a ocorrência, ou não,
da paternidade na adolescência em suas biografias. A relatividade dos
efeitos dessa experiência sobre as carreiras dos rapazes fica ainda mais
patente quando se consideram as implicações que a maternidade adolescente impõe
sobre as carreiras femininas.
As
variações sociais do impacto da maternidade adolescente
Mais da
metade das mães adolescentes das classes médias não estudava e não trabalhava,
e uma proporção ainda maior não auferia qualquer tipo de renda. Estar fora do
universo escolar e de trabalho constitui sintoma da internalidade feminina,
tendência aguçada quando se considera que o lazer fica bastante comprometido em
virtude do nascimento da criança. Esse quadro justifica os lamentos de solidão
e de isolamento tão freqüentes nos depoimentos das jovens mães. A
proporção das mulheres que estudava era um pouco maior do que a das que
trabalhavam fora. Pode-se supor que a maternidade nas camadas médias tende a
afetar menos a carreira escolar relativamente à profissional. O fato de
a grande maioria dessas mulheres não auferir renda própria no momento da
entrevista coloca em relevo que a maternidade não apressa sua entrada no
mercado de trabalho; pelo contrário, faz com que, ao menos por um tempo, elas
passem a depender integralmente de outros para garantir sua subsistência
material e a da criança.
Conclusões
importantes sobressaem quando se compara a inserção escolar e profissional
desse grupo de mulheres com a das que, pertencendo à mesma classe social, não
experimentaram a maternidade na adolescência. Em nítido contraste com a
situação das primeiras, a maioria das não-mães conciliava estudo e trabalho, e
uma proporção ainda maior auferia algum tipo de renda. Essa configuração denota
a menor internalidade em relação à casa comparativamente às jovens mães.
Há fortes razões para creditar as diferenças entre os dois grupos de mulheres à
experiência da maternidade adolescente. Nada sugere que houvesse entre elas uma
distinção prévia com respeito a projetos educacionais e ambições de
carreira. Os percursos escolares das jovens mães se processavam, até a gravidez
ou o nascimento da criança, de modo linear e sem interrupções significativas, e
também não há nos depoimentos indícios convincentes de que elas alocassem um
valor menor na carreira profissional comparativamente às não-mães. A
maternidade na adolescência introduz, assim, um diferencial significativo no
encaminhamento das trajetórias escolar e profissional das mulheres de classes
médias.
Há
contrapontos importantes entre a maternidade e a paternidade adolescentes. O
fato de os projetos e percursos dos jovens pais serem, grosso modo,
preservados, sugere que a paternidade impõe um abalo menor nas trajetórias
masculinas do que a maternidade sobre as femininas. Essa disparidade assume um
sentido especial, e talvez exacerbado, quando se assinala que não há, nas
camadas médias, uma distinção digna de nota no tocante às ambições educacionais
e profissionais femininas e masculinas. Em outras palavras, a indistinção das
inserções escolar-profissional de homens e mulheres que não foram pais na
adolescência torna ainda mais salientes as diferenças observáveis nas carreiras
femininas e masculinas dos jovens que experimentaram a parentalidade nessa
etapa da vida. Evidencia-se, assim, o quanto a experiência da parentalidade é
marcada por um diferencial de gênero nos percursos juvenis.
Entretanto,
deve-se considerar que as alterações acarretadas pela maternidade nas carreiras
femininas podem ser apenas temporárias. Há, no universo investigado, casos de
mulheres que tinham retomado suas atividades escolares e/ou de trabalho algum
tempo depois do nascimento da criança. Esta volta era, em parte, possibilitada
pela ajuda de familiares e de empregadas domésticas. Contudo, tal apoio não
elimina os custos com que essas moças se defrontam na tentativa de conciliar as
atividades fora do lar com as funções maternais. Essas dificuldades raramente aparecem
nos depoimentos masculinos. Uma condição importante para que a retomada dos
estudos se processe de forma mais sistemática, e suas carreiras apresentem,
mais adiante, um sentido persistente, ascendente e cumulativo é, precisamente,
a não-reincidência em experiências inesperadas (tal como costuma ocorrer
na primeira gravidez) de maternidade na adolescência. E há fortes indícios de
que a experiência da maternidade nesses estratos sociais (e o mesmo vale para
os rapazes, ainda que em menor grau) introduz efetivamente uma inflexão nas
trajetórias anticoncepcionais24:
elas não só passam a se prevenir contra gestações não-programadas, como também
tendem a exigir, de forma mais determinada, o uso do preservativo masculino
(sobretudo com parceiros ocasionais). A maternidade adolescente nos estratos
médios parece ser um evento mais episódico (o que não quer dizer menos
dramático) na biografia dessas mulheres. Pode-se aventar que as expectativas de
carreira estejam entre os fatores que previnem a reincidência das informantes
das classes médias na experiência de GA.
Coincidências
sobressaem quando se compara o modo como se organizam as carreiras
escolar-profissional das mães das classes médias com as das classes populares.
Tal como assinalado para as primeiras, a maioria das jovens mães populares não
estudava e não trabalhava, e uma proporção ainda maior não auferia nenhum tipo
de renda. Essas similaridades entre os dois grupos de mulheres parecem
indicativas de que a maternidade constitui experiência suficientemente
significativa para elucidar o modo como se estruturam as carreiras escolar e
profissional das jovens mães, a ponto de subordinar, inclusive, os constrangimentos
e especificidades de classe25.
A
repercussão imposta pela maternidade nas carreiras femininas das classes
populares é confirmada quando são comparadas com as das mulheres que,
pertencendo à mesma classe social, não experimentaram a maternidade na
adolescência. Em contraste com as jovens mães, a maioria daquelas, além de
auferir algum tipo de renda no momento da entrevista, encontrava-se inserida no
universo escolar. Deduz-se que a maternidade adolescente também introduz um
diferencial importante no encaminhamento dos percursos escolar-profissional das
mulheres de classes populares. E o faz retirando as jovens mães de um
espaço mais público, acirrando a internalidade em relação à casa; são
constantes, entre as mães populares, as queixas com respeito à solidão e
ao isolamento.
A
notável diferença entre os dois grupos de mulheres de classes populares com
respeito às suas inserções escolar-profissional contrasta com as significativas
similaridades entre as dos pais e não-pais. Reitera-se, também por essa via, o
impacto mais significativo da maternidade do que da paternidade sobre as
carreiras juvenis na classes populares. Tendo em vista que essa conclusão
aplica-se também às camadas médias, pode-se postular que as restrições que
pesam sobre as mães adolescentes são bem mais significativas do que aquelas que
afetam seus parceiros, independentemente de suas inserções sociais
particulares.
O
impacto da maternidade sobre as carreiras femininas não é equivalente quando se
compara pelo prisma da classe social. O abalo que a experiência impõe sobre as
trajetórias sofre retraduções importantes. A maternidade nas classes médias
convulsiona projetos e trajetórias escolares, que, até então, se processavam de
modo linear e sem interrupções significativas. O mesmo não ocorre nas classes
populares: as carreiras escolares nestas apresentam caráter mais errático,
tendo em vista que as sucessivas entradas e saídas da escola antecedem
amplamente a maternidade. Tal experiência desponta como mais um, entre tantos
outros motivos, que imprimem um sentido inconsistente às trajetórias.
Será
que a maternidade nas classes populares detém, frente a esses outros motivos,
alguma especificidade no sentido de provocar a evasão escolar definitiva?
Alguns casos, no universo investigado, ilustram essa possibilidade. Eles são
mais prováveis nas situações em que a inserção feminina no mercado de trabalho
revela-se imperiosa, em virtude, muitas vezes, do desemprego de seus parceiros.
A dificuldade de conciliar os estudos com o trabalho e, mais ainda, dessas
atividades com as responsabilidades domésticas e maternas, complica ou
impossibilita a retomada da carreira escolar. Algumas informantes tendem a
eclipsar essas considerações, atribuindo a suspensão definitiva dos estudos
fundamentalmente à(s) gravidez(es). O depoimento abaixo provém de uma mulher
que experimentou a maternidade na adolescência por duas vezes com um mesmo
parceiro; a renda familiar provinha exclusivamente dela: "Muita coisa na
minha vida, por causa dessa gravidez, mudou. Quem sabe se eu não tivesse
engravidado, eu não estaria estudando e teria outra vida hoje" (moça, 24
anos, solteira em união, 2 filhos, classe popular, Porto Alegre).
Um
número não-desprezível de mulheres justifica o não-estudar e/ou trabalhar
alegando resistência, quando não proibição, dos parceiros com seu envolvimento
nessas atividades: "Ele não me diz por quê; diz que não precisa"
(moça, 20 anos, solteira com união, 2 filhas, classe popular, Porto Alegre);
"[ele] não gostava que eu fosse à escola grávida" (moça, 22 anos,
separada do 1º casamento e em união consensual com o 2º, 1 filho, classe
popular, Porto Alegre)26.
Uma outra, referindo-se ao primeiro parceiro, que foi assassinado, comenta:
Ele não
deixava eu sair pra trabalhar. Quando eu ia, ele ficava ligando pro meu
serviço, dizendo que ia me apanhar. Teve uma vez que eu desci do elevador com o
filho da minha patroa e ele me agrediu e agrediu o filho da minha patroa. Aí
ela me mandou embora. (moça, 22 anos, solteira, 1 filho, classe popular, Rio de
Janeiro).
Há
vários exemplos de informantes de classes populares que sustentam planos de
voltar a estudar, e, embora em menor número, há algumas concretizações nesse
sentido. Mas deve-se considerar que um dos fatores que dificulta a retomada
mais sistemática e consistente é que, comparativamente às mulheres de classes
médias, são mais recorrentes as reincidências das informantes populares em
outras experiências de maternidade adolescente inesperadas – seja com o
mesmo parceiro, ou com parceiros diferentes –, que promovem novas interrupções
nas suas carreiras escolares. A situação pode ser exemplificada com o caso, não
extraordinário, de uma informante que interrompe os estudos em virtude de sua
responsabilidade no cuidado da casa e dos irmãos; retoma-os mais tarde;
abandona-os na primeira gravidez; volta a estudar quando o filho faz três anos
para interrompê-los novamente ao saber-se grávida do segundo27.
O fato de as crianças subseqüentes não serem planejadas, na maioria dos casos,
constitui também evidência de que a experiência da maternidade não impõe
necessariamente mudanças nas trajetórias anticoncepcionais28.
Essas trajetórias revelam serem mais afetadas quando comparadas às masculinas
da mesma classe, e também em relação às das informantes de classes médias,
ainda que em menor grau nesse caso.
Pode-se
indagar em que medida a ausência de uma perspectiva profissional futura,
associada à uma escolaridade errática, fomentam a reincidência de gravidez na
adolescência e/ou a impermeabilidade relativa de suas trajetórias
anticoncepcionais frente à experiência da primeira maternidade. Diante dessas condições,
nem uma eventual gestação na adolescência, nem sua reincidência, são encaradas
como problemas contra os quais elas devem se prevenir. Em contraste, o caráter
mais consistente das perspectivas profissionais e dos percursos escolares das
mulheres das classes médias pode funcionar como antídoto contra eventuais
gravidezes na adolescência. Os depoimentos de informantes de classes médias sem
maternidade são ilustrativos:
Se eu
tivesse um filho agora, pra mim seria total desvantagem. Quando eu fico sabendo
que alguma amiga tá grávida, eu fico arrasada! Porque atrapalha a vida, você
deixa de estudar. Por exemplo, eu tenho um projeto de vida agora. Eu quero
viajar, eu quero fazer meu curso. Se eu tivesse um filho, aí não poderia fazer
isso. Você limita sua vida. Então eu acho muito cedo pra isso. (moça, 20 anos,
solteira, sem filhos, classe média, Salvador).
Quase
todas as minhas amigas já são mães. Não vou falar que acabou com a vida delas,
porque filho não acaba com nossa vida. Mas deu uma suspensão legal em relação
ao tempo. Algumas pararam de estudar, outras de trabalhar, ficaram dependendo
de pai, algumas viraram donas de casa. Eu acho que o que eu mais tenho medo
na vida é virar dona de casa em tempo integral: não quero desistir dos meus
sonhos no meio do caminho. (moça, 22 anos, solteira, sem filhos, classe
média, Rio de Janeiro).
Mas
voltemos às mães de classes populares. Um outro fator neutraliza igualmente a
retomada sistemática do estudo e do trabalho: as próprias concepções de gênero.
A ausência de perspectivas profissionais promissoras elucida o fato de que,
para algumas delas, a internalidade em relação à casa se afirme como valor
(cf. Salem, 1981). O depoimento abaixo é de uma mãe de três crianças, com três
parceiros diferentes, que sempre trabalhou como doméstica. Ela morava com a
mãe, tia e irmãos, aguardando a construção da casa por parte de um outro
parceiro, pai do quarto filho que ela estava esperando. Contrastando com o medo
de virar dona de casa em tempo integral, enunciado por mulheres de classes
médias (cf. última transcrição), a informante justifica o porquê de ela não
estar trabalhando, nem estudando: "Eu cansei de trabalhar e de
estudar. Chegar do trabalho correndo e ir pro colégio correndo..." (moça,
20 anos, mora com o companheiro, 3 filhos e grávida do 4° na época da
entrevista, classe popular, Salvador).
Considerações
finais
Este
artigo procurou apontar o caráter indissociável da articulação entre classe
social e gênero na compreensão do fenômeno da GA. Entretanto, ao pretender escapar
do essencialismo contido na classificação etária, não se deve, por outro lado,
deixar-se aprisionar em novas determinações, que tomam como estáticas as
condições de classe e de gênero. Mais do que articular, é mister que se
contextualize o emprego dessas categorias sociais, uma vez que não operam
sempre da mesma forma. O diferencial de gênero é um demarcador fundamental na
modulação das biografias no que tange à experiência da parentalidade. Todavia,
as condições materiais de existência desempenham um papel importante nas
histórias desses jovens em termos dos desenlaces possíveis para as trajetórias
escolar e profissional.
Em
suma, pode-se postular que, tanto nas classes médias quanto nas populares, a
paternidade adolescente impacta pouco nos percursos escolares e de trabalho
masculinos. A relatividade dessas conseqüências se deve a fatores distintos,
como diversos são os modos de manifestação em cada um dos contextos. Nos
estratos médios, o fenômeno é atestado na preservação dos projetos e percursos educacionais
e de carreira dos sujeitos a despeito da ocorrência da paternidade. Entre os
populares, o pequeno impacto da experiência deriva do fato de que as inflexões
mais significativas nessas carreiras são produzidas por fatores que antecedem,
em muito, a paternidade adolescente. Visto sob outro ângulo, a exterioridade
ou expulsão dos rapazes de classes populares com relação à casa tende a
preceder a eventual ocorrência de uma paternidade adolescente na biografia. Já
nos estratos médios, o fenômeno da exterioridade masculina aparece menos
vigoroso: ele é contrabalançado pelo prolongamento de sua juventude,
mesmo quando advém a paternidade.
Por sua
vez, a maternidade adolescente nas classes populares não apressa o ingresso
dessas mulheres no mercado de trabalho. Torna-as, ainda que provisoriamente,
mais dependentes de outros – parceiros, familiares ou ambos – para garantir sua
subsistência e a da criança. Quando seus parceiros assumem a criança em
um sentido não meramente verbal, estipula-se uma complementaridade entre a
internalidade feminina e a externalidade masculina. Essa divisão de trabalho
mais segregada entre os gêneros, mesmo que temporariamente instalada, impõe um
peso considerável sobre os ombros masculinos. Deduz-se que as repercussões
impostas pela maternidade nas carreiras femininas também têm, sob esse ponto de
vista, significativas implicações nas masculinas. Contudo, as adversas
condições de classe fazem com que os jovens pais populares raramente consigam
arcar sozinhos com o peso das novas responsabilidades. É justamente aí que, tal
como se verifica entre as classes médias, o comparecimento dos familiares de
origem revela-se fundamental. Porém é fato que esses personagens atuam no drama
de uma paternidade adolescente muito antes do nascimento da criança, fazendo
mais do que pagar, parcial ou integralmente, as contas.
Assim,
buscou-se abordar, neste texto, as conseqüências da parentalidade nas
trajetórias escolar e profissional de jovens de ambos os sexos, com distintas
inserções sociais, de forma a introduzir novos elementos para a análise desse problema
social. Outros aspectos, tais como os (re)arranjos domésticos deflagrados pela
GA, ou, ainda, seu impacto sobre as vidas social e afetiva dos jovens, serão
contemplados oportunamente.
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