Natureza
e Cultura
[capítulo I de As Estruturas
Elementares do Parentesco]
CLAUDE
LÉVI-STRAUSS
De
todos os princípios propostos pelos precursores da sociologia nenhum sem dúvida
foi repudiado com tanta firmeza quanto o que diz respeito à distinção entre
estado de natureza e estado de sociedade. Não se pode, com efeito, fazer
referência em contradição a uma fase da evolução da humanidade durante a qual
esta, na ausência de toda de organização social, nem por isso tivesse deixado
de desenvolver formas de atividade que são parte integrante da cultura. Mas a
distinção proposta pode admitir interpretações mais válidas. Os etnólogos da
escola de Elliot Smith e de Perry retomaram-na para edificar uma teoria
discutível mas que, fora do detalhe arbitrário do esquema histórico, deixa
aparecer claramente a profunda oposição entre dois níveis da cultura humana e o
caráter revolucionário da transformação neolítica. O homem de Neanderthal, com
seu provável conhecimento da linguagem, suas indústrias líticas e ritos
funerários, não pode ser considerado como vivendo no estado de natureza. Seu
nível cultural o opõe, no entanto, a seus sucessores neolíticos comum rigor
comparável – embora em sentido diferente - ao que os autores do século XVII ou
do século XVIII atribuíam à sua própria distinção. Mas, sobretudo, começamos a
compreender que a distinção entre estado de natureza e estado de sociedade[1],
na falta de significado histórico aceitável, apresenta um valor lógico que
justifica plenamente sua utilização pela sociologiamoderna, como instrumento de
método. O homem é um ser biológico ao mesmo tempo que um individuo social.
Entre as respostas que dá as citações exteriores ou interiores algumas dependem
inteiramente de sua natureza, outras de sua condição. Por isso não há
dificuldade alguma em encontrar a origem respectiva do reflexo pupilar e da
posição tomada pela mão do cavaleiro ao simples contato das rédeas. Mas nem
sempre a distinção é tão fácil assim. Frequentemente o estimulo
físico-biológico e o estimulo psicossocial despertam reações do mesmo tipo,
sendo possível perguntar, como já fazia Locke, se o medo da criança na
escuridão explica-se como manifestação de sua natureza animal ou como resultado
das historias contada pela ama [2]. Mais ainda, na maioria dos casos, as causas
não são realmente distintas e a resposta do sujeito constitui verdadeira
integração das fontes biológicas e das fontes de seu comportamento. Assim, é o
que se verifica na atitude da mãe com relação ao filho ou nas emoções complexas
do espectador de uma parada militar. É que a cultura não pode ser considerada
nem simplesmente justaposta nem simplesmente superposta à vida. Em certo
sentido substitui-se à vida, e em outro sentido utiliza-a e a transforma para
realizar uma síntese de nova ordem.
Se é relativamente fácil estabelecer a distinção de principio, a
dificuldade começa quando sequer realizar a análise. Esta dificuldade é dupla,
de um lado podendo tentar-se definir, para cada atitude, uma causa de ordem
biológica ou social, e de outro lado, procurando por que mecanismo atitudes de
origem cultural pode enxertar-se em comportamentos que são de natureza
biológica, e conseguir integrá-los a si. Negar ou subestimar a oposição é
privar-se de toda compreensão dos fenômenos sociais, e ao lhe darmos seu
inteiro alcance metodológico corremos o risco de converter em mistério
insolúvel o problema da passagem entre as duas ordens. Onde acaba a natureza?
Onde começa a cultura? É possível conceber vários meios de responder a esta
dupla questão. Mas todos mostraram-se até agora singularmente decepcionantes. O
método mais simples consistiria em isolar uma criança recém-nascida e observar
suas reações a diferentes excitações durante as primeiras horas ou os primeiros
dias depois do nascimento. Poder-se-ia então supor que as respostas fornecidas
nessas condições são de origem psicobiológicas, e não dependem de síntese
culturais ulteriores. A psicologia contemporânea obteve por este método
resultados cujo interesse nãodeve levar a esquecer seu caráter fragmentário e
limitado. Em primeiro lugar, as únicas observações válidas devem ser precoces,
porque podem surgir condicionamentos ao cabo de poucas semanas, talvez mesmo de
dias. Assim, somente tipos de reação muito elementares, como certas expressões
emocionais, podem na prática ser estudados. Por outro lado, as experiências
negativas apresentam sempre caráter equívoco. Porque permanece Semp reaberta a
questão de saber a questão de saber se a reação estudada está ausente por causa
de sua origem cultural ou porque os mecanismos fisiológicos que condicionam seu
aparecimento não se acham ainda montados, devido à precocidade da observação. O
fato de uma criancinha não andar não poderia levar á conclusão da necessidade
da aprendizagem, porque se sabe, ao contrário, que a criança anda
espontaneamente desde que organicamente for capaz de fazê-lo. [3] Uma situação
análoga pode apresentar-se em outros terrenos. O único meio de eliminar estas
incertezas seria prolongar a observação além de alguns meses, ou mesmo de
alguns anos. Mas nesse caso ficamos às voltas com dificuldades insolúveis,
porque o meio que satisfizesse as condições rigorosas de isolamento exigido
pela experiência não é menos artificial do que o meio cultural ao qual se
pretende substitui-lo. Por exemplo, os cuidados da mãe durante os primeiros
anos da vida humana constituem condição natural do desenvolvimento do
individuo. O experimentador acha-se, portanto encerrado em um circulo vicioso.
È verdade que o acaso parece ter conseguido às vezes aquilo que o artifício é
incapaz de fazer. A imaginação dos homens do século XVIII foi fortemente
abalada pelo caso dessas “crianças selvagens", perdidas no campo desde
seus primeiros anos, as quais, por um excepcional concurso de possibilidades,
tiveram a possibilidade de subsistir e desenvolver-se fora de toda influência
do meio social. Mas, conforme se nota muito claramente pelos antigos relatos, a
maioria dessas crianças foram anormais congênitos, sendo preciso procurar na
imbecilidade de que parecem, quase unicamente, ter dado prova a causa inicial
de seu abandono, e não, como às vezes se pretenderia, ter sido o resultado. [4]
Observações recentes confirmam esta maneira de ver. Os pretensos
"meninos-lobos"encontrados na Índia nunca chegaram a alcançar o nível
normal. Um deles – Sanichar – jamais pôde falar, mesmo adulto. Klug relata que,
de duas crianças descobertas juntas, há cerca de vinte anos, o mais moço
permaneceu incapaz de falar e o mais velho viveu até os seis anos, mas com o
nível mental de uma criança de dois anos e meio e um vocabulário de cem
palavras apenas. [5] Um relatório de 1939 considera como idiota congênito uma
"criança-baduino" da África do Sul, descoberta em 1903 com a idade
provável de doze anos. [6] Na maioria das vezes, aliás, as circunstância da
descoberta são duvidosas. Além disso, estes exemplos devem ser afastados por
uma razão de princípio, que nos coloca imediatamente no coração dos problemas
cuja discussão é o objeto desta Introdução. Desde1811 Blumenbach, em um estudo
dedicado a uma dessas crianças, o selvagem Peter, observa que nada se poderia
esperar de fenômenos desta ordem. Porque, dizia ele com profundidade, se o
homem é um animal doméstico é o único que se domesticou a si próprio. [7]
Assim, épossível esperar ver um animal doméstico, por exemplo, um gato, um
cachorro ou uma ave de galinheiro, quando se acha perdido ou isolado, voltar ao
comportamento natural que era o da espécie antes da intervenção exterior da
domesticação. Mas nada de semelhante pode se produzir com o homem, porque no
caso deste último não existe comportamento natural da espécie ao qual o
individuo isolado possa voltar mediante regressão. Conforme dizia Voltaire,mais
ou menos nestes termos, uma abelha extraviada longe de sua colméia e incapaz de
encontrá-la é uma abelha perdida, mas nem por isso se tornou uma abelha
selvagem. As"crianças selvagens", quer sejam produto do acaso quer da
experimentação, podem ser monstruosidades culturais, mas em nenhum caso
testemunhas fieis de um estado anterior.É impossível, portanto, esperar no
homem a ilustração de tipos de comportamento de caráter pré-cultural. Será
possível então tentar um caminho inverso e procurar atingir, nos níveis
superiores da vida animal, atitudes e manifestações nas quais se possam
reconhecer o esboço, os sinais precursores da cultura? Na aparência, é a
oposição entre comportamento humano e o comportamento animal que fornece a mais
notável ilustração da antinomia entre acultura e a natureza. A passagem – se
existe – não poderia, pois ser procurada na etapa das supostas sociedades
animais, tais como são encontradas entre alguns insetos. Porque em nenhum lugar
melhor que nesses exemplos encontram-se reunidos os atributos, impossíveis de ignorar,
da natureza, a saber, o instinto, o equipamento anatômico, único que pode
permitir o exercício do instinto, e a transmissão hereditária das condutas
essenciais à sobrevivência do individuo e da espécie. Não há nessas estruturas
coletivas nenhum lugar mesmo para um esboço do que se pudesse chamar o modelo
cultural universal, isto é, linguagem, instrumentos, instituições sociais e
sistema de valores estéticos, morais ou religiosos. É à outra extremidade da
escala animal que devemos nos dirigir, se quisermos descobrir o esboço desses comportamentos
humanos. Será com relação aos mamíferos superiores, mais especialmente os
macacos antropóides. Ora, as pesquisas realizadas há mais de trinta anos com os
grandes macacos são particularmente desencorajantes a este respeito. Não que os
componentes fundamentais do modelo cultural universal estejam rigorosamente
ausentes, pois é possível, à custa de infinitos cuidados, conduzir certos
sujeitos a articularem alguns monossílabos ou dissílabos, aos que aliás não
ligam nunca qualquer sentido. Dentro de certos limites, o chimpanzé pode
utilizar instrumentos elementares e eventualmente improvisá-los. [8] Relações
temporárias de solidariedade ou de subordinação podem aparecer e desfazer-se no
interior de um determinado grupo. Finalmente, é possível que alguém se divirta
em reconhecer em algumas atitudes singulares o esboço de formas desinteressadas
de atividade ou de contemplação. Um fato notável é que são sobretudo os
sentimentos que associamos de preferência à parte mais nobre de nossa natureza,
cuja expressão parece poder ser mais facilmente identificada nos antropóides,
como o terror religioso e a ambiguidade do sagrado. [9] Mas se todos estes
fenômenos advogam favoravelmente por sua presença, são ainda mais eloquentes –
e em sentido completamente diferente - por sua pobreza. Ficamos menos
impressionados por seu esboço elementar do que pelo fato – confirmado por todos
os especialistas – da impossibilidade, ao que parece radical, de levar esses
esboços além de sua expressão mais primitiva. Assim, o fosso que se poderia
esperar preencher por mil observações engenhosas na realidade é apenas
deslocado, para aparecer ainda mais intransponível. Quando se demonstrou que
nenhum obstáculos anatômico impede o macaco de articular os sons da linguagem,
e mesmo conjunto silábicos, só podemos nos sentir ainda mais admirados pela
irremediável ausência da linguagem e pela total incapacidade de atribuir aos
sons emitidos ou ouvidos o caráter de sinais. A mesma verificação impõe-se nos
outros terrenos. Explica a conclusão pessimista de um atento observador que se
resigna, após anos de estudo e de experimentação, a ver no chimpanzé "um
ser empedernido no estreito circulo de suas imperfeições inatas, um ser
`regressivo' quando comparado ao homem, um ser que não quer nem pode enveredar
pelo caminho do progresso". [10] Porém, ainda mais do que pelos insucessos
diante de tentativas bem definidas, chegamos a uma convicção pela verificação
de ordem mais geral, que nos leva a penetrar mais profundamente no âmago do
problema. Queremos dizer que é impossível tirar conclusões gerais da
experiência. A vida social dos macacos não se presta à formulação de nenhuma norma.
Em presença do macho ou da fêmea, do animal vivo ou morto, do jovem e do velho,
do parente ou do estranho, o macaco comporta-se com surpreendente
versatilidade. Não somente o comportamento do mesmo sujeito não é constante,
mas não se pode perceber nenhuma regularidade no comportamento coletivo. Tanto
no domínio da vida sexual quanto no que se refere às outras formas de
atividade, o estimulante, externo ou interno, e os ajustamentos aproximativos
por influência dos erros e acertos, parecem fornecer todos os elementos necessários
à solução dos problemas de interpretação. Estas incertezas aparecem no estudo das
relações hierárquicas no interior de um mesmo grupo de vertebrados, permitindo
contudo estabelecer uma ordem de subordinação dos animais uns aos outros. Esta
ordem é notavelmente estável, porque o mesmo animal conserva a posição dominante
durante períodos de ordem de um ano. E no entanto a sistematização torna-se
impossível devido a frequentes irregularidades. Uma galinha subordinada a duas
congêneres que ocupam um lugar medíocre no quadro hierárquico ataca no entanto
o animal que possui a categoria mais elevada.Observam-se relações triangulares,
nas quais A domina B, B domina C e C domina A, ao passo que todos os três
dominam o resto do grupo. [11] O mesmo acontece no que diz respeito às relações
e gostos individuais dos macacos antropóides, entre os quais as irregularidades
são ainda mais acentuadas. "Os primatas apresentam muito maior diversidade
em suas preferências alimentares do que os ratos, os pombos e as
galinhas". [12] No domínio da vida sexual, também, encontramos neles
"um quadro que corresponde quase inteiramente ao comportamento sexual do
homem... tanto nas modalidades normais quanto nas manifestações mais notáveis
habitualmente chamadas "anormais", porque se chocam com as convenções
sociais". [13] Por esta individualização dos comportamentos, o
orangotango, o gorila e o chimpanzé assemelham-se singularmente ao homem. [14]
Malinowski está, portanto enganado quando diz que todos os fatores que definem o
comportamento sexual dos machos antropóides são comuns a todos os membros da
espécie "funcionando com uma tal uniformidade que, para cada espécie
animal, basta um grupo dedados e um só... as variações são tão pequenas e tão
insignificantes que o zoólogo está plenamente autorizado a
ignorá-las".[15]Qual é, ao contrario, a realidade? A poliandria parece
reinar entre os macacos gritadores da região do Panamá, embora a proporção dos
machos com relação às fêmeas seja de 28 a 72. De fato, observam-se relações de
promiscuidade entre uma fêmea no cio e vários machos, mas sem se poder definir
preferências, uma ordem de prioridade ou ligações duráveis. [16] Os gibões das
florestas do Sião viveriam em famílias monógamas relativamente estáveis. Entretanto,
as relações sexuais ocorrem indiferentemente entre membros do mesmo grupo familiar
ou com um individuo pertencente a outro grupo, confirmando assim – dir-se-ia –
a crença indígena de que os gibões são a reencarnação dos amantes infelizes.
[17] Monogamia e poligamia existem lado a lado entre os rhesus [18], e os
bandos de chimpanzé selvagens observados na África variam entre quatro e
quatorze indivíduos, deixando aberta a questão de seu regime matrimonial. [19] Tudo
parece passar-se como se os grandes macacos, já capazes de se libertarem de um comportamento
específico, não pudessem chegar a estabelecer uma norma num plano novo. O comportamento
instintivo perde a nitidez e a precisão que encontramos na maioria dos mamíferos,
mas a diferença é puramente negativa e o domínio abandonado pela natureza permanece
sendo um território não ocupado.
Esta
ausência de regra parece oferecer o critério mais seguro que permita distinguir
um processo natural de um processo cultural. Nada há de mais sugestivo a este
respeito do que a oposição entre a atitude da criança, mesmo muito jovem, para
quem todos os problemas são regulados por nítidas distinções, mais nítidas e às
vezes imperiosas do que entre os adultos, e as relações entre os membros de um
grupo simiesco, inteiramente abandonadas ao acaso e dos encontros, nas quais o
comportamento de um sujeito nada informa sobre o seu congênere, nas quais
conduta do mesmo individuo hoje não garante em nada seu comportamento no dia
seguinte. É que, com efeito, há um circulo vicioso ao se procurar na natureza a
origem das regras institucionais que supõem – mais ainda, que são já –
acultura, e cuja instauração no interior de um grupo dificilmente pode ser
concebida sem a intervenção da linguagem. A constância e a regularidade
existem, a bem dizer, tanto na natureza quanto na cultura. Mas na primeira
aparecem precisamente no domínio em que na segunda se manifestam mais
fracamente, e vice-versa. Em um caso, é o domínio da herança biológica, em
outro, o da tradição externa. Não se poderia pedir a uma ilusória continuidade entre
as duas ordens que explicasse os pontos em que se opõem. Por conseguinte,
nenhuma análise real permite apreender o ponto de passagem entre os fatos da
natureza e os fatos da cultura, além do mecanismo da articulação deles. Mas a
discussão precedente não nos ofereceu apenas este resultado negativo. Forneceu,
com a presença ou a ausência da regra nos comportamentos não sujeitos às
determinações instintivas, o critério mais válido das atitudes sociais. Em toda
parte onde se manifesta uma regra podemos ter certeza de estar numa etapa da
cultura. Simetricamente, é fácil reconhecer no universal o critério da
natureza. Porque aquilo que é constante em todos os homens escapa necessariamente
ao domínio dos costumes, das técnicas e das instituições pelas quais seus grupos
se diferenciam e se opõem. Na falta de análise real, os dois critérios, o da
norma e o da universalidade, oferecem o principio de uma análise ideal, que
pode permitir – ao menos em certos casos e em certos limites - isolar os
elementos naturais dos elementos culturais que intervêm nas sínteses de ordem
mais complexa. Estabeleçamos, pois, que tudo quanto é universal no homem
depende da ordem da natureza e se caracteriza pela espontaneidade, e que tudo
quanto está ligado a uma norma pertence à cultura apresenta os atributos do
relativo e do particular. Encontramo-nos assim em face de um fato, ou antes de
um conjunto, que nãoestá longe, à luz das definições precedentes, de aparecer
como um escândalo, a saber, este conjunto complexo de crenças, costumes,
estipulações e instituições que designamos sumariamente pelo nome de proibição
de incesto. Porque a proibição do incesto apresenta, em menor equivoco e
indissoluvelmente reunidos, os dois caracteres nos quais reconhecemos os atributos
contraditórios de duas ordens exclusivas, isto é, constituem uma regra, mas uma
regra que, única entre todas as regras sociais, possui ao mesmo tempo caráter
de universalidade. [20] Não há praticamente necessidade de demonstrar que a
proibição do incesto constitui uma regra. Bastará lembrar que a proibição do
casamento entre parentes próximos pode ter um campo de aplicação variável, de
acordo com o modo como cada grupo define o que entende por parente próximo. Mas
esta proibição, sancionada por penalidades sem dúvida variáveis, podendo ir da
imediata execução dos culpados até a reprovação difusa, e às vezes somente até
a zombaria, está sempre presente em qualquer grupo social. Com efeito, não se
poderia invocar neste assunto as famosas exceções com que a sociologia tradicional
se satisfaz frequentemente, ao mostrar como são poucas. Porque toda sociedade faz
exceção à proibição do incesto quando a consideramos do ponto de vista de outra
sociedade, cuja regra é mais rigorosa que a sua. Treme-se ao pensar no número
de exceções que um índio paviotso deveria registrar a este respeito. Quando nos
referimos às três exceções clássicas, o Egito, o Peru, o Havaí, a que aliás é
preciso acrescentar algumas outras (Azande, Madagáscar, Birmânia, etc.), não se
deve perder de vista que estes sistemas são exceções relativamente ao nosso
próprio, na medida em que a proibição abrange ai um domínio mais restrito do
que entre nós . Mas a noção de exceção é inteiramente relativa, e sua extensão
seria muito diferente para um australiano, um tonga ou um esquimó.A questão não
consiste, portanto em saber se existem grupos que permitem casamentos que são
excluídos em outros, mas, em vez disso, em saber se há grupos nos quais nenhum
tipo de casamento é proibido. A resposta deve ser então absolutamente negativa,
e por dois motivos. Primeiramente, porque o casamento nunca é autorizado entre
todos os parentes próximos, mas somente entre algumas categorias (meia-irmã com
exclusão da irmã, irmã com exclusão da mãe, etc.). Em segundo lugar, porque
estas uniões consangüíneas ou têm caráter temporário e ritual ou caráter
oficial e permanente, mas neste ultimo caso são privilégio de uma categoria social
muito restrita. Assim é que Madagáscar a mãe, a irmã e as vezes também aprima
são cônjuges proibidos para as pessoas comuns, ao passo que para os grandes
chefes eos reis somente a mãe – mas assim mesmo a mãe – é fady,
"proibida". Mas há tão poucas"exceções" à proibição do
incesto que esta é objeto de extrema susceptibilidade por parte da consciência
indígena. Quando um matrimônio é estéril, postula-se uma relação incestuosa embora
ignorada, e a cerimônias expiatórias prescritas são automaticamente
celebradas.[21]O caso do Egito antigo é mais perturbador, porque descobertas
recentes [22] sugerem que os casamentos consanguíneos - particularmente entre
irmã e irmão – representaram talvez um costume espalhado entre os pequenos
funcionários e artesões, e não limitado, conforme se acreditava outrora[23], à
casta reinante e às mais tardias dinastias.Mas em matéria de incesto não
poderia haver exceção absoluta. Nosso eminente colega Ralph Linton observou-nos
um dia que na genealogia de uma família nobre de Samoa, estudada por ele, em
oito casamentos consecutivos entre irmão e irmã somente se refere a uma irmã
mais moça, e que a opinião indígena tinha condenado como imoral. O casamento
entre o irmão e a irmã mais velha aparece, pois como uma concessão ao direito
de primogenitura, e não exclui a proibição do incesto, porque, além da mãe e da
filha, a irmã mais moça continua sendo cônjuge proibida, ou pelo menos
desaprovado. Ora, um dos raros textos que possuímos sobre a organização social do antigo Egito indica uma interpretação análoga. Trata-se do papiro de
Boulaq n. 5, que relata a história da filha de um rei que quer casar-se com seu
irmão mais velho. A mãe pondera: "senão tiver filhos depois desses dois,
não é obrigatório casá-los um com o outro?" [24] Também aqui parece
tratar-se de uma fórmula de proibição que autoriza o casamento com a irmã mais velha,
mas reprova-a com a mais moça. Veremos adiante que os antigos textos japoneses descrevem
o incesto como união com a irmã mais moça, sendo excluída a mais velha, alargando
assim o campo de nossa interpretação. Mesmo nesses casos, que poderíamos ser
tentados a considerar como limites, a regra da universalidade não é menos
aparente do que o caráter normativo da instituição. Eis aqui, pois, um fenômeno
que apresenta simultaneamente o caráter distintivo dos fatos da natureza e o
caráter distintivo – teoricamente contraditório dos precedentes – dos fatos da cultura.
A proibição do incesto possui ao mesmo tempo a universalidade das tendências e
dos instintos e o caráter coercitivo das leis e das instituições. De onde
provém então? Qual é seu lugar e significação? Ultrapassando inevitavelmente os
limites sempre históricos e geográficos da cultura, coextensiva no tempo e no
espaço com a espécie biológica, mas reforçando, pela proibição social, a ação
espontânea das forças naturais a que se opõe por seus caracteres próprios,
embora identificando-se a elas quanto ao campo de aplicação, a proibição do
incesto aparece diante da reflexão sociológica como terrível mistério. Poucas
prescrições sociais preservaram, com igual extensão, em nossa sociedade a
auréola de terror respeitoso que se liga às coisas sagradas. De maneira
significativa, e que teremos necessidade de comentar e explicar mais adiante, o
incesto, em forma própria e na forma metafórica de abuso de menor (conforme diz
o sentimento popular, "da qual se poderia ser o pai"), vem a
encontrar-semesmo, em certos países, com sua antítese, as relações sexuais
inter-raciais, que no entanto são uma forma extrema da exogamia, como os dois
mais poderosos estimulantes do horror e da vingança coletivas. Mas este
ambiente de terror mágico não define somente o clima no qual, ainda mesmo na
sociedade moderna, a instituição evolui. Este ambiente envolve também, no plano
teórico, debates aos quais, desde as origens, a sociologia se dedicou com uma tenacidade
ambígua: "A famosa questão da proibição do incesto, declara Lèvy-Bruhl,
esta vexata quaestio de que os
etnólogos e os sociólogos tanto procuraram a solução, não admite nenhuma. Não
há oportunidade em colocá-la. Nas sociedades das quais acabamos de falar é inútil
perguntar por que razão o incesto é proibido. Esta proibição não existe...;
ninguém pensa em proibi-la. É alguma coisa que não acontece. Ou, se por
impossível isso acontece, seria alguma coisa inaudita, um monstrum, uma transgressão que espalha o
horror e pavor. As sociedades primitivas conhecem a proibição da autofagia ou
do fratricídio? Essas sociedades não têm nem mais nem menos razão para proibir
o incesto". [25] Não nos espantaremos em encontrar tanto constrangimento
em um autor que não hesitou contudo diante das mais audaciosas hipóteses, se
considerarmos que os sociólogos são quase unânimes em manifestar, diante deste
problema, a mesma repugnância e a mesma timidez.
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