sexta-feira, 28 de setembro de 2012

A ERA DAS REVOLUÇÕES
Capítulo 2: A Revolução Industrial (Resenha

Por Paulo César Travaglini



Eric Hobsbawm inicia falando do próprio nome “Revolução Industrial”, o qual reflete um impacto relativamente tardio sobre a Europa. O fato existia na Inglaterra antes do termo. A década de 1780 foi, segundo a maioria dos estudiosos, o ponto de “partida” para a Revolução, a qual não se pode dizer completa, visto que ainda prossegue.

O avanço britânico não se deveu à superioridade tecnológica e científica, mesmo porque os franceses é que estavam à frente nesse quesito (produziam, por exemplo, melhores navios e o mais completo tear). As condições adequadas estavam visivelmente presentes na Grã-Bretanha: mais de um século se passara desde que o primeiro rei fora julgado e condenado; o lucro privado e o desenvolvimento econômico eram os supremos objetivos da política governamental; já não se falava em um “campesinato britânico”, pois as atividades agrícolas já estavam predominantemente dirigidas para o mercado; as manufaturas já se haviam disseminado por um interior não feudal. Além disso, a Grã-Bretanha possuía uma indústria admiravelmente ajustada à revolução industrial pioneira, em condições de se lançar à indústria algodoeira e à expansão colonial.

O autor prossegue falando do comércio colonial, que criara a indústria algodoeira e continuava a alimentá-la. As plantações das Índias Ocidentais forneciam o grosso do algodão para a indústria britânica e, em troca, os plantadores compravam tecidos de algodão em apreciáveis quantidades. Entre 1750 e 1769, a exportação britânica de tecidos de algodão aumentou mais de dez vezes. Por volta de 1840, a Europa adquiriu 200 milhões de jardas de tecidos de algodão, enquanto as áreas “subdesenvolvidas” adquiriram 529 milhões; merecendo destaque a América Latina – já separada de Portugal e Espanha – e as Índias Orientais.

O algodão, portanto, fornecia possibilidades astronômicas para tentar os empresários privados a se lançarem na aventura da revolução industrial. Com relação à maneira mais óbvia de se expandir a indústria no século XVIII, fala-se do sistema “doméstico”, no qual se trabalhava a matéria-prima nas casas, recebendo-a e entregando-a aos mercadores que estavam a caminho de se tornar patrões.

Continuando, Hobsbawm diz que, em 1830, a “indústria” e a “fábrica” no sentido moderno ainda significavam quase que exclusivamente as áreas algodoeiras do Reino Unido. Se o algodão florescia, a economia florescia, se ele caía, também caía a economia. Só a agricultura tinha um poder comparável, embora estivesse em visível declínio.

O progresso da indústria algodoeira, entretanto, gerava, entre 1830 e 1840, acentuada desaceleração no crescimento e até um declínio da renda nacional britânica nesse período, o que gerou descontentamento social. As crises periódicas da economia, que levavam ao desemprego, quedas na produção, bancarrotas, etc., eram bem conhecidas.

Dando prosseguimento, fala-se da metalurgia, especialmente a do ferro, que permanecia modesta. Em 1790, a produção britânica suplantou a da França em somente 40%. Na verdade, a produção britânica de ferro, comparada à produção mundial, tendeu a afundar nas décadas seguintes.

Já a mineração era forte no período: em 1800, a Grã-Bretanha deve ter produzido cerca de 10 milhões de toneladas de carvão, ou aproximadamente 90% da produção mundial. Essa imensa indústria estimulou a invenção básica que iria transformar as indústrias de bens de capital: a ferrovia. Mal tinham as ferrovias provado ser tecnicamente viáveis e lucrativas na Inglaterra (por volta de 1825-1830) e planos para sua construção já eram feitos na maioria dos países do mundo ocidental, embora sua execução fosse geralmente retardada.

Se outra forma de investimento doméstico podia ter sido encontrada – por exemplo, na construção – é uma questão acadêmica para a qual a resposta permanece em dúvida. De fato, o capital encontrou as ferrovias, que não podiam ter sido construídas tão rapidamente e em tão grande escala sem essa torrente de capital, especialmente na metade da década de 1840. Era uma conjuntura feliz, pois, de imediato, as ferrovias resolveram virtualmente todos os problemas do crescimento econômico.

Eric Hobsbawm dá continuidade dizendo que uma economia industrial significa um brusco declínio proporcional da produção agrícola (isto é, rural) e um brusco aumento da população não agrícola (isto é, crescentemente urbana), e, quase certamente, (como no período em apreço) um rápido aumento geral da população, o que, portanto, implica, em primeira instância, um brusco crescimento no fornecimento de alimentos, ou seja, uma “revolução agrícola”.

Também é apontado o problema do fornecimento de mão de obra. Com efeito, conseguir um número suficiente de trabalhadores com as necessárias qualificações e habilidades era tarefa difícil. Todo operário tinha que aprender a trabalhar de uma maneira adequada à indústria: ritmo diário ininterrupto, por exemplo, diferente do trabalhador agrícola ou do artesão independente. Instaurava-se a disciplina do operariado, a fim de estabelecerem-se mecanismos de controle. Também era mais conveniente empregar as dóceis (e mais baratas) mulheres e crianças.

O autor finaliza dizendo que tanto a Grã-Bretanha quanto o mundo sabiam que a revolução industrial lançada nestas ilhas, não só pelos comerciantes e empresários como através deles, cuja única lei era comprar no mercado mais barato e vender sem restrição no mais caro, estava transformando o mundo. Nada poderia detê-la. Os deuses e os reis do passado eram impotentes diante dos homens de negócios e das máquinas a vapor do presente.



BIBLIOGRAFIA



HOBSBAWM, Eric J. A era das revoluções: 1789-1848. 25. Ed. SP: Paz e Terra, 2010.

Desigualdade social e democracia


 


A pobreza é um problema que afeta a maioria dos países.

A desigualdade social e a pobreza são problemas sociais que afetam a maioria dos países na atualidade. A pobreza existe em todos os países, pobres ou ricos, mas a desigualdade social é um fenômeno que ocorre principalmente em países não desenvolvidos.

O conceito de desigualdade social é um guarda-chuva que compreende diversos tipos de desigualdades, desde desigualdade de oportunidade, resultado, etc., até desigualdade de escolaridade, de renda, de gênero, etc. De modo geral, a desigualdade econômica – a mais conhecida – é chamada imprecisamente de desigualdade social, dada pela distribuição desigual de renda. No Brasil, a desigualdade social tem sido um cartão de visita para o mundo, pois é um dos países mais desiguais. Segundo dados da ONU, em 2005 o Brasil era a 8º nação mais desigual do mundo. O índice Gini, que mede a desigualdade de renda, divulgou em 2009 que a do Brasil caiu de 0,58 para 0,52 (quanto mais próximo de 1, maior a desigualdade), porém esta ainda é gritante.

Alguns dos pesquisadores que estudam a desigualdade social brasileira atribuem, em parte, a persistente desigualdade brasileira a fatores que remontam ao Brasil colônia, pré-1930 – a máquina midiática, em especial a televisiva, produz e reproduz a ideia da desigualdade, creditando o “pecado original” como fator primordial desse flagelo social e, assim, por extensão, o senso comum “compra” essa ideia já formatada –, ao afirmar que são três os “pilares coloniais” que apoiam a desigualdade: a influência ibérica, os padrões de títulos de posse de latifúndios e a escravidão.

É evidente que essas variáveis contribuíram intensamente para que a desigualdade brasileira permanecesse por séculos em patamares inaceitáveis. Todavia, a desigualdade social no Brasil tem sido percebida nas últimas décadas, não como herança pré-moderna, mas sim como decorrência do efetivo processo de modernização que tomou o país a partir do início do século XIX.
Junto com o próprio desenvolvimento econômico, cresceu também a miséria, as disparidades sociais – educação, renda, saúde, etc. – a flagrante concentração de renda, o desemprego, a fome que atinge milhões de brasileiros, a desnutrição, a mortalidade infantil, a baixa escolaridade, a violência. Essas são expressões do grau a que chegaram as desigualdades sociais no Brasil.

Segundo Rousseau, a desigualdade tende a se acumular. Os que vêm de família modesta têm, em média, menos probabilidade de obter um nível alto de instrução. Os que possuem baixo nível de escolaridade têm menos probabilidade de chegar a um status social elevado, de exercer profissão de prestígio e ser bem remunerado. É verdade que as desigualdades sociais são em grande parte geradas pelo jogo do mercado e do capital, assim como é também verdade que o sistema político intervém de diversas maneiras, às vezes mais, às vezes menos, para regular, regulamentar e corrigir o funcionamento dos mercados em que se formam as remunerações materiais e simbólicas.

Observa-se que o combate à desigualdade deixou de ser responsabilidade nacional e sofre a regulação de instituições multilaterais, como o Banco Mundial. Conforme argumenta a socióloga Amélia Cohn, a partir dessa ideia “se inventou a teoria do capital humano, pela qual se investe nas pessoas para que elas possam competir no mercado”. De acordo com a socióloga, a saúde perdeu seu status de direito, tornando-se um investimento na qualificação do indivíduo.

Ou, como afirma Hélio Jaguaribe em seu artigo No limiar do século 21: “Num país com 190 milhões de habitantes, um terço da população dispõe de condições de educação e vida comparáveis às de um país europeu. Outro terço, entretanto, se situa num nível extremamente modesto, comparável aos mais pobres padrões afro-asiáticos. O terço intermediário se aproxima mais do inferior que do superior”.

A sociedade brasileira deve perceber que sem um efetivo Estado democrático, não há como combater ou mesmo reduzir significativamente a desigualdade social no Brasil.

Orson Camargo
Colaborador Brasil Escola
Graduado em Sociologia e Política pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo – FESPSP
Mestre em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP

Cultura e educação


A SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO DE PIERRE BOURDIEU:

LIMITES E CONTRIBUIÇÕES

CLÁUDIO MARQUES MARTINS NOGUEIRA *

MARIA ALICE NOGUEIRA **

 

RESUMO: O artigo destaca as contribuições e aponta alguns limites da

Sociologia da Educação de Pierre Bourdieu. Na primeira parte, são

analisadas as reflexões do autor sobre a relação entre herança familiar

(sobretudo, cultural) e desempenho escolar. Na segunda parte, são discutidas

suas teses sobre o papel da escola na reprodução e legitimação

das desigualdades sociais.

Palavras-chave: Sociologia da Educação. Bourdieu. Família. Escola.

 

É difícil fazer um balanço equilibrado das contribuições e dos

limites da obra de Bourdieu no campo da Sociologia da Educação.

A própria grandiosidade do empreendimento bourdieusiano

parece conduzir a posições radicais, a aceitações ou rejeições

precipitadas, a avaliações apaixonadas que pouco contribuem para uma

efetiva compreensão da obra do autor.

Bourdieu teve o mérito de formular, a partir dos anos 60, uma

resposta original, abrangente e bem fundamentada, teórica e

empiricamente, para o problema das desigualdades escolares. Essa resposta

tornou-se um marco na história, não apenas da Sociologia da Educação,

mas do pensamento e da prática educacional em todo o mundo. Até

meados do século XX, predominava nas Ciências Sociais e mesmo no

senso-comum uma visão extremamente otimista, de inspiração

funcionalista, que atribuía à escolarização um papel central no duplo

processo de superação do atraso econômico, do autoritarismo e dos

privilégios adscritos, associados às sociedades tradicionais, e de construção

de uma nova sociedade, justa (meritocrática), moderna (centrada na razão

e nos conhecimentos científicos) e democrática (fundamentada na

autonomia individual). Supunha-se que por meio da escola pública e

gratuita seria resolvido o problema do acesso à educação e, assim,

garantida, em princípio, a igualdade de oportunidades entre todos os

cidadãos. Os indivíduos competiriam dentro do sistema de ensino, em

condições iguais, e aqueles que se destacassem por seus dons individuais

seriam levados, por uma questão de justiça, a avançar em suas carreiras

escolares e, posteriormente, a ocupar as posições superiores na hierarquia

social. A escola seria, nessa perspectiva, uma instituição neutra, que

difundiria um conhecimento racional e objetivo e que selecionaria seus

alunos com base em critérios racionais.

O que ocorre nos anos 60 é uma crise profunda dessa concepção

de escola e uma reinterpretação radical do papel dos sistemas de ensino

na sociedade. Abandona-se o otimismo das décadas anteriores em favor

de uma postura bem mais pessimista. Pelo menos dois movimentos

principais parecem estar associados a essa transformação do olhar sobre

a educação. Em primeiro lugar, tem-se, a partir do final dos anos 50, a

divulgação de uma série de grandes pesquisas quantitativas patrocinadas

pelos governos inglês, americano e francês (Aritmética Política inglesa,

Relatório Coleman – EUA, Estudos do INED – França) que, em

resumo, mostraram, de forma clara, o peso da origem social sobre os

destinos escolares. Embora os resultados dessas pesquisas não tenham

conduzido imediatamente à rejeição da perspectiva funcionalista – visto

que foram interpretados como indicadores de deficiências passageiras

do sistema de ensino que poderiam ser superadas com maiores

investimentos – contribuíram para minar, a médio prazo, a confiança

na tão propalada igualdade de oportunidades diante da escola. A partir

deles, tornou-se imperativo reconhecer que o desempenho escolar não

dependia, tão simplesmente, dos dons individuais, mas da origem social

dos alunos (classe, etnia, sexo, local de moradia, entre outros). Em

segundo lugar, a mudança no olhar sobre a educação nos anos 60 está

relacionada a certos efeitos inesperados da massificação do ensino. Assim,

deve-se considerar o progressivo sentimento de frustração dos

estudantes, particularmente os franceses, com o caráter autoritário e

elitista do sistema educacional e com o baixo retorno social e econômico

auferido pelos certificados escolares no mercado de trabalho. Os anos

60 marcam a chegada ao ensino secundário e à universidade da primeira

geração beneficiada pela forte expansão do sistema educacional no pósguerra.

Essa geração, arregimentada em setores mais amplos do que os

das tradicionais elites escolarizadas, vê – em parte, pela desvalorização

dos títulos escolares que acompanhou a massificação do ensino –

frustradas suas expectativas de mobilidade social através da escola. A

decepção dessa “geração enganada”, como diz Bourdieu, alimentou uma

crítica feroz ao sistema educacional e contribuiu para a eclosão do amplo

movimento de contestação social de 1968.

O que Bourdieu propõe nos anos 60, diante desse acúmulo de

“anomalias” do paradigma funcionalista – para usar os termos de Kuhn

– é uma verdadeira revolução científica. Bourdieu oferece-nos um novo

modo de interpretação da escola e da educação que, pelo menos num

primeiro momento, pareceu ser capaz de explicar tudo o que a perspectiva

anterior não conseguia. Os dados que apontam a forte relação entre

desempenho escolar e origem social e que, em última instância, negavam

o paradigma funcionalista, transformam-se nos elementos de sustentação

da nova teoria. A frustração dos jovens das camadas médias e populares

diante das falsas promessas do sistema de ensino converte-se em uma

evidência a mais que corrobora as novas teses propostas por Bourdieu.

Onde se via igualdade de oportunidades, meritocracia, justiça social,

Bourdieu passa a ver reprodução e legitimação das desigualdades sociais.

A educação, na teoria de Bourdieu, perde o papel que lhe fora atribuído

de instância transformadora e democratizadora das sociedades e passa a

ser vista como uma das principais instituições por meio da qual se mantêm

e se legitimam os privilégios sociais. Trata-se, portanto, de uma inversão

total de perspectiva. Bourdieu oferece um novo quadro teórico para a

18 Educação & Sociedade, ano XXIII, no 78, Abril/2002

análise da educação, dentro do qual os dados estatísticos acumulados a

partir dos anos 50 e a crise de confiança no sistema de ensino vivenciada

nos anos 60 ganham uma nova interpretação.

É impressionante o sucesso alcançado pela Sociologia da Educação

de Bourdieu. Passados quase quarenta anos da publicação de Les héritiers

– primeira grande obra do autor dedicada à educação –, sua sociologia

continua viva e inspirando novos trabalhos sobre os mais diversos aspectos

do fenômeno educacional. Ela constitui, ainda hoje, se não o mais

importante, certamente um dos mais importantes paradigmas utilizados

na interpretação sociológica da educação.

O reconhecimento da força e do alcance da Sociologia da Educação

de Bourdieu não pode nos impedir, no entanto, de constatar suas

limitações. Um dos objetivos deste artigo é justamente o de contribuir

para uma análise mais equilibrada da obra de Bourdieu. O primeiro

passo nesse sentido é certamente o de sublinhar as contribuições do

autor. Não se pode passar às críticas sem antes reconhecer os méritos. O

passo seguinte, no entanto, consiste, justamente, em indicar certas

limitações da teoria.

O artigo está dividido em duas partes principais. Na primeira

serão consideradas as análises e reflexões de Bourdieu relacionadas ao

tema da constituição diferenciada dos atores segundo sua origem social

e familiar e as repercussões dessa formação diferenciada para suas atitudes

e comportamentos escolares. Uma das teses centrais da Sociologia da

Educação de Bourdieu é a de que os alunos não são indivíduos abstratos

que competem em condições relativamente igualitárias na escola, mas

atores socialmente constituídos que trazem, em larga medida incorporada,

uma bagagem social e cultural diferenciada e mais ou menos rentável no

mercado escolar. O grau variado de sucesso alcançado pelos alunos ao

longo de seus percursos escolares não poderia ser explicado por seus

dons pessoais – relacionados à sua constituição biológica ou psicológica

particular –, mas por sua origem social, que os colocaria em condições

mais ou menos favoráveis diante das exigências escolares.

A segunda parte do artigo refere-se às teses de Bourdieu sobre a

escola e seu papel na reprodução das desigualdades sociais. A escola, na

perspectiva dele, não seria uma instituição imparcial que, simplesmente,

seleciona os mais talentosos a partir de critérios objetivos. Bourdieu

questiona frontalmente a neutralidade da escola e do conhecimento

escolar, argumentando que o que essa instituição representa e cobra dos

alunos são, basicamente, os gostos, as crenças, as posturas e os valores

dos grupos dominantes, dissimuladamente apresentados como cultura

universal. A escola teria, assim, um papel ativo – ao definir seu currículo,

seus métodos de ensino e suas formas de avaliação – no processo social

de reprodução das desigualdades sociais. Mais do que isso, ela cumpriria

o papel fundamental de legitimação dessas desigualdades, ao dissimular

as bases sociais destas, convertendo-as em diferenças acadêmicas e

cognitivas, relacionadas aos méritos e dons individuais.

 

A herança familiar e suas implicações escolares

 

A especificidade da Sociologia da Educação de Bourdieu e a

peculiaridade de sua discussão sobre a questão da herança cultural familiar

tornam-se mais claras quando se consideram certas preocupações teóricas

mais amplas que caracterizam o conjunto da obra do autor.

A sociologia de Bourdieu como um todo está marcada pela busca

de superação de um dilema clássico do pensamento sociológico, aquele

que se define pela oposição entre subjetivismo e objetivismo. Por um

lado, Bourdieu aponta as insuficiências e os riscos das abordagens que se

restringem à experiência imediata do ator individual, ou seja, que se

atêm de modo exclusivo ou preponderante ao universo das representações,

preferências, escolhas e ações individuais. Essas abordagens,

rotuladas por ele como subjetivistas, são criticadas não apenas por seu

escopo limitado, isto é, pelo fato de não considerarem as condições

objetivas que explicariam o curso da experiência prática subjetiva, mas,

sobretudo, por contribuírem para uma concepção ilusória do mundo

social que atribuiria aos sujeitos excessiva autonomia e consciência na

condução de suas ações e interações.

Em contraposição ao subjetivismo, Bourdieu afirma, de modo

radical, o caráter socialmente condicionado das atitudes e comportamentos

individuais. O indivíduo, em Bourdieu, é um ator socialmente

configurado em seus mínimos detalhes. Os gostos mais íntimos, as

preferências, as aptidões, as posturas corporais, a entonação de voz, as

aspirações relativas ao futuro profissional, tudo seria socialmente

constituído.

Se, por um lado, Bourdieu se afasta, então, do subjetivismo, por

outro, ele critica, igualmente, as abordagens estruturalistas, definidas

por ele como objetivistas, que descreveriam a experiência subjetiva como

diretamente subordinada às relações objetivas (normalmente, de natureza

lingüística ou socioeconômica). Segundo ele, faltaria a essas abordagens

uma teoria da ação capaz de explicar os mecanismos ou processos de

mediação envolvidos na passagem da estrutura social para a ação

individual. Reconhecer-se-ia as propriedades estruturantes da estrutura

sem, no entanto, analisar os processos de estruturação, de operação da

estrutura no interior das práticas sociais.

Como forma de distanciamento em relação ao objetivismo,

Bourdieu afirma, então, em primeiro lugar, que a ação das estruturas

sociais sobre o comportamento individual se dá preponderantemente

de dentro para fora e não o inverso. A partir de sua formação inicial em

um ambiente social e familiar que corresponde a uma posição específica

na estrutura social, os indivíduos incorporariam um conjunto de

disposições para a ação típica dessa posição (um habitus familiar ou de

classe) e que passaria a conduzi-los ao longo do tempo e nos mais

variados ambientes de ação. As normas e constrangimentos que

caracterizam uma determinada posição na estrutura social não

operariam, assim, como entidades reificadas que agem diretamente, a

cada momento, de fora para dentro, sobre o comportamento individual.

Ao contrário, a estrutura social se perpetuaria porque os próprios

indivíduos tenderiam a atualizá-la ao agir de acordo com o conjunto

de disposições típico da posição estrutural na qual eles foram

socializados. Bourdieu observa, ainda, e este é um segundo ponto

importante em que ele pretende se afastar do objetivismo, que esse

sistema de disposições incorporado pelo sujeito não o conduz em suas

ações de modo mecânico. Essas disposições não seriam normas rígidas

e detalhadas de ação, mas princípios de orientação que precisariam ser

adaptados pelo sujeito às variadas circunstâncias de ação. Ter-se-ia,

assim, uma relação dinâmica, não previamente determinada, entre as

condições estruturais originais nas quais foi constituído o sistema de

disposições do indivíduo e que tendem a se perpetuar através deste e

as condições – normalmente, em parte modificadas – nas quais essas

disposições seriam aplicadas. Em poucas palavras, a estrutura social

conduziria as ações individuais e tenderia a se reproduzir através delas,

mas esse processo não seria rígido, direto ou mecânico.

Transpondo essa discussão teórica para o campo da Sociologia da

Educação, é preciso reconhecer o esforço de Bourdieu para evitar tanto

o objetivismo quanto o subjetivismo na análise dos fenômenos

educacionais. O ator da Sociologia da Educação de Bourdieu não é nem

o indivíduo isolado, consciente, reflexivo, nem o sujeito determinado,

mecanicamente submetido às condições objetivas em que ele age. Em

primeiro lugar, contrapondo-se ao subjetivismo, Bourdieu nega, da forma

mais radical possível, o caráter autônomo do sujeito individual. Cada

indivíduo passa a ser caracterizado por uma bagagem socialmente

herdada. Essa bagagem inclui, por um lado, certos componentes

objetivos, externos ao indivíduo, e que podem ser postos a serviço do

sucesso escolar. Fazem parte dessa primeira categoria o capital econômico,

tomado em termos dos bens e serviços a que ele dá acesso, o capital

social, definido como o conjunto de relacionamentos sociais influentes

mantidos pela família, além do capital cultural institucionalizado,

formado basicamente por títulos escolares. A bagagem transmitida pela

família inclui, por outro lado, certos componentes que passam a fazer

parte da própria subjetividade do indivíduo, sobretudo, o capital cultural

na sua forma “incorporada”. Como elementos constitutivos dessa forma

de capital merecem destaque a chamada “cultura geral” – expressão

sintomaticamente vaga; os gostos em matéria de arte, culinária,

decoração, vestuário, esportes e etc; o domínio maior ou menor da língua

culta; as informações sobre o mundo escolar.

Cabe, desde já, observar que, do ponto de vista de Bourdieu, o

capital cultural constitui (sobretudo, na sua forma incorporada1) o

elemento da bagagem familiar que teria o maior impacto na definição

do destino escolar. A Sociologia da Educação de Bourdieu se notabiliza,

justamente, pela diminuição que promove do peso do fator econômico,

comparativamente ao cultural, na explicação das desigualdades escolares.

Em primeiro lugar, a posse de capital cultural favoreceria o desempenho

escolar na medida em que facilitaria a aprendizagem dos conteúdos e

códigos escolares. As referências culturais, os conhecimentos considerados

legítimos (cultos, apropriados) e o domínio maior ou menor da língua

culta, trazidos de casa por certas crianças, facilitariam o aprendizado

escolar na medida em que funcionariam como uma ponte entre o mundo

familiar e a cultura escolar. A educação escolar, no caso das crianças

oriundas de meios culturalmente favorecidos, seria uma espécie de

continuação da educação familiar, enquanto para as outras crianças

significaria algo estranho, distante, ou mesmo ameaçador. A posse de

capital cultural favoreceria o êxito escolar, em segundo lugar, porque

propiciaria um melhor desempenho nos processos formais e informais

de avaliação. Bourdieu observa que a avaliação escolar vai muito além de

uma simples verificação de aprendizagem, incluindo um verdadeiro

julgamento cultural e até mesmo moral dos alunos. Cobra-se que os

alunos tenham um estilo elegante de falar, de escrever e até mesmo de se

comportar; que sejam intelectualmente curiosos, interessados e

disciplinados; que saibam cumprir adequadamente as regras da “boa

educação”. Essas exigências só podem ser plenamente atendidas por quem

foi previamente (na família) socializado nesses mesmos valores.

Vale ainda destacar a importância de um componente específico

do capital cultural, a informação sobre a estrutura e o funcionamento do

sistema de ensino. Não se trata aqui apenas do conhecimento maior ou

menor que se possa ter da organização formal do sistema escolar (ramos

de ensino, cursos, estabelecimentos), mas, sobretudo, da compreensão

que se tenha das hierarquias mais ou menos sutis que distinguem as

ramificações escolares do ponto de vista de sua qualidade acadêmica,

prestígio social e retorno financeiro. Essa compreensão é fundamental

para que os pais formulem estratégias de forma a orientar, da forma mais

eficaz possível, a trajetória dos filhos, sobretudo, nos momentos de decisões

cruciais (continuação ou interrupção de estudos, mudança de

estabelecimento, escolha do curso superior, entre outros). Esse tipo

específico de capital cultural é proveniente, vale observar, não apenas da

experiência escolar (e profissional, no caso, dos pais professores) vivida

diretamente pelos pais, mas também do contato pessoal com amigos e

outros parentes que possuam familiaridade com o sistema educacional.

Vê-se, neste caso, a importância do capital social como um instrumento

de acumulação do capital cultural. O capital econômico e o social

funcionariam, na verdade, na maior parte das vezes, apenas como meios

auxiliares na acumulação do capital cultural. No caso do capital

econômico, por exemplo, permitindo o acesso a determinados estabelecimentos

de ensino e a certos bens culturais mais caros, como as viagens

de estudo. O beneficio escolar extraído dessas oportunidades depende

sempre, no entanto, do capital cultural previamente possuído.

A bagagem herdada por cada indivíduo não poderia ser entendida,

no entanto, simplesmente, como um conjunto mais ou menos rentável

de capitais que cada indivíduo utiliza a partir de critérios definidos de

modo idiossincrático. Como já foi dito, segundo Bourdieu, cada grupo

social, em função das condições objetivas que caracterizam sua posição

na estrutura social, constituiria um sistema específico de disposições

para a ação, que seria transmitido aos indivíduos na forma do habitus. A

idéia de Bourdieu é a de que, pelo acúmulo histórico de experiências de

êxito e de fracasso, os grupos sociais iriam construindo um conhecimento

prático (não plenamente consciente) relativo ao que é possível ou não de

ser alcançado pelos seus membros dentro da realidade social concreta na

qual eles agem, e sobre as formas mais adequadas de fazê-lo. Dada a

posição do grupo no espaço social e, portanto, de acordo com o volume

e os tipos de capitais (econômico, social, cultural e simbólico) possuídos

por seus membros, certas estratégias de ação seriam mais seguras e

rentáveis e outras seriam mais arriscadas. Na perspectiva de Bourdieu,

ao longo do tempo, por um processo não deliberado de ajustamento

entre investimentos e condições objetivas de ação, as estratégias mais

adequadas, mais viáveis, acabariam por ser adotadas pelos grupos e seriam,

então, incorporadas pelos sujeitos como parte do seu habitus.

Aplicado à educação, esse raciocínio indica que os grupos sociais,

a partir dos exemplos de sucesso e fracasso no sistema escolar vividos por

seus membros, constituem uma estimativa de suas chances objetivas no

universo escolar e passam a adequar, inconscientemente, seus investimentos

a essas chances. Concretamente, isso significa que os membros

de cada grupo social tenderão a investir uma parcela maior ou menor

dos seus esforços – medidos em termos de tempo, dedicação e recursos

financeiros – na carreira escolar dos seus filhos, conforme percebam serem

maiores ou menores as probabilidades de êxito. A natureza e a intensidade

dos investimentos escolares variariam, ainda, em função do grau em que

a reprodução social de cada grupo (manutenção da posição estrutural

atual ou da tendência à ascensão social) depende do sucesso escolar dos

seus membros. Assim, as elites econômicas, por exemplo, não precisariam

investir tão pesadamente na escolarização dos seus filhos quanto certas

frações das classes médias que devem sua posição social, quase que

exclusivamente, à certificação escolar. Bourdieu (1998) observa, também,

em terceiro lugar, que o grau de investimento na carreira escolar está

relacionado ao retorno provável, intuitivamente estimado, que se pode

obter com o título escolar, não apenas no mercado de trabalho, mas,

também, nos diferentes mercados simbólicos, como o matrimonial, por

exemplo. Esse retorno, ou seja, o valor do título escolar nos diversos

mercados, variaria, basicamente, em função de sua maior ou menor oferta.

Quanto mais fácil o acesso a um título escolar, maior a tendência a sua

desvalorização (“inflação de títulos”).

Bourdieu distingue freqüentemente três conjuntos de disposições

e de estratégias de investimento escolar que seriam adotadas

tendencialmente pelas classes populares, classes médias (ou pequena

burguesia) e pelas elites. O primeiro desses grupos, pobre em capital

econômico e cultural, tenderia a investir de modo moderado no sistema

de ensino. Esse investimento, relativamente baixo, se explicaria por várias

razões. Em primeiro lugar, a percepção, a partir dos exemplos acumulados,

de que as chances de sucesso são reduzidas (faltariam os recursos

econômicos, sociais e, sobretudo, culturais necessários para um bom

desempenho escolar). Isso tornaria o retorno do investimento muito

incerto e, portanto, o risco muito alto. Essa incerteza e esse risco seriam

ainda maiores pelo fato de que o retorno do investimento escolar é dado

no longo prazo. Essas famílias estariam, em função de sua condição

socioeconômica, menos preparadas para suportar os custos econômicos

dessa espera (especialmente, o adiamento da entrada dos filhos no

mercado de trabalho). Acrescenta-se a isso o fato de que o retorno

alcançado com os títulos escolares depende, parcialmente, como já foi

dito anteriormente, da posse de recursos econômicos e sociais passíveis

de serem mobilizados para potencializar o valor dos títulos. No caso

dessas famílias, nas quais esses recursos são reduzidos, tender-se-ia,

naturalmente, a obter um retorno mínimo com os títulos escolares

conquistados. Em resumo, no caso das classes populares, o investimento

no mercado escolar tenderia a oferecer um retorno baixo, incerto e a

longo prazo. Diante disso, esse grupo social tenderia a adotar o que

Bourdieu chama de “liberalismo” em relação à educação dos filhos. A

vida escolar dos filhos não seria acompanhada de modo muito sistemático

e nem haveria uma cobrança intensiva em relação ao sucesso escolar. As

aspirações escolares desse grupo seriam moderadas. Esperar-se-ia dos filhos

que eles estudassem apenas o suficiente para se manter (o que,

normalmente, dada a inflação de títulos, já significa, de qualquer forma,

alcançar uma escolarização superior à dos pais) ou se elevar ligeiramente

em relação ao nível socioeconômico dos pais. Essas famílias tenderiam,

assim, a privilegiar as carreiras escolares mais curtas, que dão acesso mais

rapidamente à inserção profissional. Um investimento numa carreira mais

longa só seria feito nos casos em que a criança apresentasse, precocemente,

resultados escolares excepcionalmente positivos, capazes de justificar a

aposta arriscada no investimento escolar.

Contrapondo-se às classes populares, as classes médias, ou pequenaburguesia,

tenderiam a investir pesada e sistematicamente na escolarização

dos filhos. Esse comportamento se explicaria, em primeiro lugar, pelas

chances objetivamente superiores (em comparação com as classes

populares) dos filhos das classes médias alcançarem o sucesso escolar. As

famílias desse grupo social já possuiriam um volume razoável de capitais

que lhes permitiria apostar no mercado escolar sem correr tantos riscos.

Para Bourdieu, no entanto, o comportamento das famílias das classes

médias não pode ser explicado apenas pelas chances comparativamente

superiores dos filhos dessas famílias alcançarem o sucesso escolar. Bourdieu

observa que é necessário considerar, igualmente, as expectativas quanto

ao futuro sustentadas por esses grupos sociais. Originárias, em grande

parte, das camadas populares e tendo ascendido às classes médias por

meio da escolarização, as famílias de classe média nutririam esperanças

de continuarem sua ascensão social, agora, em direção às elites. Todas as

condutas das classes médias poderiam ser entendidas, então, como parte

de um esforço mais amplo com vistas a criar condições favoráveis à ascensão

social. Bourdieu destaca, como componentes desse esforço, o ascetismo,

o malthusianismo e a boa vontade cultural.

O ascetismo se caracterizaria pela disposição das classes médias

para renunciarem aos prazeres imediatos em benefício do seu projeto de

futuro. Essa disposição pode ser claramente ilustrada pelos sacrifícios

(renúncia à compra de bens materiais, redução de gastos com passeios

etc.) que essas famílias realizam para garantir uma boa escolarização da

prole. Esse ascetismo se traduziria, ainda – em termos da forma de educar

os filhos –, num “rigorismo ascético”, numa valorização da disciplina e

do autocontrole, e na exigência de uma dedicação contínua e intensiva

aos estudos.2

O malthusianismo seria a propensão ao controle da fecundidade.

As famílias de classe média, por uma estratégia inconsciente de concentração

dos investimentos, tenderiam, mais do que as das classes populares e mesmo

do que as das elites, a reduzir o número de filhos. Bourdieu observa que,

de fato, as estatísticas comprovam que as oportunidades de uma vida escolar

mais longa estão intimamente associadas – quando se controla todas as

outras variáveis – ao tamanho da família.

Finalmente, a boa vontade cultural se caracterizaria pelo

reconhecimento da cultura legítima e pelo esforço sistemático para

adquiri-la. As famílias das classes médias – particularmente aquelas

originárias das camadas populares e que detêm, portanto, um limitado

capital cultural – empreenderiam uma série de ações (compra de livros

premiados, freqüência a eventos culturais etc.) com vistas à aquisição de

capital cultural.

Embora, de um modo geral, possa se falar que a aspiração por

ascensão social, que caracteriza as classes médias, conduz à tendência de

se investir fortemente na escolarização dos filhos, não se pode esquecer

que o grau em que isso ocorre dependeria do peso relativo dos capitais

em cada uma das frações da classe média. As frações mais providas de

capital econômico – ao contrário das que possuem quase que exclusivamente

capital cultural – tenderiam a não conceder uma prioridade

tão acentuada ao investimento escolar. É necessário observar, também,

que a tendência maior ou menor ao investimento escolar estaria

relacionada com a trajetória ascendente ou descendente da fração de

classe média em questão. Os grupos ascendentes seriam os que

depositariam maiores esperanças na escolarização de seus filhos.

Bourdieu se refere, finalmente, às elites econômicas e culturais.

Esses grupos investiriam pesadamente na escola, porém, de uma forma

bem mais descontraída – “laxista”, como diria Bourdieu – do que as

classes médias. Esse laxismo se deveria, por um lado, ao fato de que o

sucesso escolar no caso dessas famílias é tido como algo natural, que não

depende de um grande esforço de mobilização familiar. As condições

objetivas, posse de um volume expressivo de capitais econômicos, sociais

e culturais, tornariam o fracasso escolar bastante improvável. Além disso,

as elites estariam livres da luta pela ascensão social. Elas já ocupam as

posições dominantes da sociedade, não dependendo, portanto, do sucesso

escolar dos filhos para ascender socialmente. Em relação às elites, Bourdieu

contrasta, de qualquer forma, as frações mais ricas em capital cultural

com aquelas mais ricas em capital econômico. As primeiras seriam

propensas a um investimento escolar mais intenso, visando o acesso às

carreiras mais longas e prestigiosas do sistema de ensino. Já as frações

mais ricas em capital econômico tenderiam a buscar na escola, principalmente,

uma certificação que legitimaria o acesso às posições de controle

já garantidas pelo capital econômico.

Essas análises de Bourdieu, centradas no conceito de classe social,

têm sido criticadas por, pelo menos, duas razões principais. Em primeiro

lugar, uma série de pesquisas tem acentuado que a categoria classe

social não seria suficiente como critério de diferenciação dos grupos

familiares segundo suas práticas escolares. Mesmo a divisão em frações

de classe, utilizada largamente pelo próprio Bourdieu, seria por demais

abrangente para captar certas diferenças entre as famílias. Assim,

Percheron (1981), por exemplo, através de pesquisa realizada com

famílias pertencentes às diversas classes sociais, conclui que certas

atitudes em relação à educação dos filhos (valorização da submissão,

do esforço ou da autonomia; rigorismo ou liberalismo educacional)

variam não tanto em função da classe ou fração de classe, mas, sim, de

outros fatores mais ou menos independentes em relação à divisão em

classes. A autora destaca, especialmente, a trajetória ascendente ou

descendente do grupo familiar (e não necessariamente da classe), o

nível educacional, o meio rural ou urbano e a postura mais ou menos

conservadora e religiosa de cada família. As diferenciações estabelecidas

a partir desses critérios não poderiam ser reduzidas àquelas definidas a

partir do critério de classe. Assim, por exemplo, as famílias em trajetória

ascendente, com um nível educacional mais alto, que vivem no meio

urbano e que são menos religiosas (ou menos conservadoras) tenderiam

a adotar uma postura mais liberal na educação dos filhos, qualquer que

seja a categoria socioprofissional dos pais. Tenderíamos a ter, então,

dentro de uma mesma classe ou fração de classe, famílias com um

comportamento bastante diferenciado em matéria de educação.

Inversamente, teríamos famílias de classe sociais diferentes que

adotariam certas atitudes educacionais similares. O habitus familiar,

incluindo as disposições em relação à escolarização dos filhos, não

poderia, portanto, ser diretamente deduzido do habitus de classe.

Um segundo problema apontado pelos críticos na teoria das classes

sociais de Bourdieu ou, mais amplamente, em sua teoria do espaço e das

posições sociais diz respeito aos processos de formação e de transmissão

do habitus familiar. Esse habitus não seria formado necessariamente na

direção que se poderia imaginar, dadas as condições objetivas, e nem

seria transmitido aos filhos de modo automático – por “osmose”, como

dizia Bourdieu (1998). Lahire (1995) observa que é necessário estudar a

dinâmica interna de cada família, as relações de interdependência social

e afetiva entre seus membros, para se entender o grau e modo como os

recursos disponíveis (os vários capitais e o habitus incorporado dos pais)

são ou não transmitidos aos filhos. A transmissão do capital cultural e

das disposições favoráveis à vida escolar só poderia ser feita por meio de

um contato prolongado, e afetivamente significativo, entre os portadores

desses recursos (não apenas os pais, mas outros membros da família) e

seus receptores. Esse tipo de contato, no entanto, dada as dinâmicas

internas de cada família, nem sempre ocorreria. Na mesma direção, Singly

(1996) observa que a transmissão da herança cultural depende de um

trabalho ativo realizado tanto pelos pais quanto pelos próprios filhos e

que pode ou não ser bem sucedido. Contrapondo-se à imagem do herdeiro

que passivamente recebe uma bagagem familiar privilegiada, Singly

observa que a apropriação da herança é fruto de um processo

emocionalmente complexo e de resultados incertos (há sempre a

possibilidade de dilapidação da herança), de identificação e de afastamento

do jovem em relação a sua família.

No conjunto, essas críticas a Bourdieu realçam o fato de que o

habitus de uma família e, mais ainda, de um indivíduo não pode ser

deduzido diretamente do que seria seu habitus de classe. As famílias e os

indivíduos não se reduzem à sua posição de classe. O pertencimento a

uma classe social, traduzido na forma de um habitus de classe, pode

indicar certas disposições mais gerais que tenderiam a ser compartilhadas

pelos membros da classe. Cada família, no entanto, e, mais ainda, os

indivíduos tomados separadamente, seriam o produto de múltiplas e,

em parte, contraditórias influências sociais (Lahire, 1999; Charlot, 2000).

28 Educação & Sociedade, ano XXIII, no 78, Abril/2002

A escola e o processo de reprodução das desigualdades sociais

No prefácio de A reprodução (1992, p. 11), Bourdieu afirma que

os vários capítulos desse livro apontam para um mesmo princípio de

inteligibilidade: o “das relações entre o sistema de ensino e a estrutura

das relações entre as classes”.

Esse princípio de inteligibilidade orienta, na verdade, o conjunto

das reflexões de Bourdieu sobre a escola. A escola e o trabalho pedagógico

por ela desenvolvido só poderiam ser compreendidos, na perspectiva de

Bourdieu, quando relacionados ao sistema das relações entre as classes.

A escola não seria uma instância neutra que transmitiria uma forma de

conhecimento intrinsecamente superior e que avaliaria os alunos a partir

de critérios universalistas, mas, ao contrário, seria uma instituição a serviço

da reprodução e legitimação da dominação exercida pelas classes

dominantes.

O ponto de partida do raciocínio de Bourdieu talvez se encontre na

noção de arbitrário cultural. Bourdieu se aproxima aqui de uma concepção

antropológica de cultura. De acordo com essa concepção, nenhuma cultura

pode ser objetivamente definida como superior a nenhuma outra. Os

valores que orientariam cada grupo em suas atitudes e comportamentos

seriam, por definição, arbitrários, não estariam fundamentados em

nenhuma razão objetiva, universal. Apesar de arbitrários, esses valores –

ou seja, a cultura de cada grupo – seriam vividos como os únicos possíveis

ou, pelo menos, como os únicos legítimos. Para Bourdieu, o mesmo ocorreria

no caso da escola. A cultura consagrada e transmitida pela escola não seria

objetivamente superior a nenhuma outra. O valor que lhe é concedido

seria arbitrário, não estaria fundamentado em nenhuma verdade objetiva,

inquestionável. Apesar de arbitrária, a cultura escolar seria socialmente

reconhecida como a cultura legítima, como a única universalmente válida.

Na perspectiva de Bourdieu, a conversão de um arbitrário cultural

em cultura legítima só pode ser compreendida quando se considera a

relação entre os vários arbitrários em disputa em uma determinada

sociedade e as relações de força entre os grupos ou classes sociais presentes

nessa mesma sociedade. No caso das sociedades de classes, a capacidade

de legitimação de um arbitrário cultural corresponderia à força da classe

social que o sustenta. De um modo geral, os valores arbitrários capazes

de se impor como cultura legítima seriam aqueles sustentados pela classe

dominante. Para Bourdieu, portanto, a cultura escolar, socialmente

legitimada, seria, basicamente, a cultura imposta como legítima pelas

classes dominantes.

Bourdieu observa, no entanto, que a autoridade pedagógica, ou

seja, a legitimidade da instituição escolar e da ação pedagógica que nela

se exerce, só pode ser garantida na medida em que o caráter arbitrário e

socialmente imposto da cultura escolar é dissimulado. Apesar de arbitrária

e socialmente vinculada a uma classe, a cultura escolar precisaria, para

ser legitimada, ser apresentada como uma cultura neutra. Em poucas

palavras, a autoridade alcançada por uma ação pedagógica, ou seja, a

legitimidade conferida a essa ação e aos conteúdos que ela transmite

seriam proporcionais à sua capacidade de se apresentar como não arbitrária

e não vinculada a nenhuma classe social.3

Uma vez reconhecida como legítima, ou seja, como portadora de

um discurso não arbitrário e socialmente neutro, a escola passa a poder

exercer, na perspectiva bourdieusiana, livre de qualquer suspeita, suas

funções de reprodução e legitimação das desigualdades sociais. Essas

funções se realizariam, em primeiro lugar, paradoxalmente, por meio da

eqüidade formal estabelecida pela escola entre todos os alunos. Segundo

Bourdieu (1998, p. 53),

para que sejam favorecidos os mais favorecidos e desfavorecidos os mais

desfavorecidos, é necessário e suficiente que a escola ignore, no âmbito dos

conteúdos do ensino que transmite, dos métodos e técnicas de transmissão e

dos critérios de avaliação, as desigualdades culturais entre as crianças das diferentes

classes sociais.

Tratando formalmente de modo igual, em direitos e deveres, quem

é diferente, a escola privilegiaria, dissimuladamente, quem, por sua

bagagem familiar, já é privilegiado.

Nessa perspectiva, Bourdieu compreende a relação de

comunicação pedagógica (o ensino) como uma relação formalmente

igualitária, que reproduz e legitima, no entanto, desigualdades

anteriores. O argumento do autor é o de que a comunicação pedagógica,

assim como qualquer comunicação cultural, exige, para a sua plena

compreensão e aproveitamento, que os receptores dominem o código

utilizado na produção dessa comunicação. Dito de outra forma, a

rentabilidade de uma relação de comunicação pedagógica, ou seja, o

grau em que ela é compreendida e assimilada pelos alunos, dependeria

do grau em que os alunos dominam o código necessário à decifração

dessa comunicação. Para Bourdieu, esse domínio variaria de acordo

com a maior ou menor distância existente entre o arbitrário cultural

apresentado pela escola como cultura legítima e a cultura familiar de

origem dos alunos. Para os alunos das classes dominantes, a cultura

escolar seria a sua própria cultura, reelaborada e sistematizada. Para os

demais, seria uma cultura “estrangeira”.

Mais concretamente, Bourdieu observa que a comunicação

pedagógica, tal como realizada tradicionalmente na escola, exige

implicitamente, para o seu pleno aproveitamento, o domínio prévio de

um conjunto de habilidades e referências culturais e lingüísticas que

apenas os membros das classes mais cultivadas possuiriam. Os professores

transmitiriam sua mensagem igualmente a todos os alunos como se todos

tivessem os mesmos instrumentos de decodificação. Esses instrumentos

seriam possuídos, no entanto, apenas por aqueles que têm a cultura

escolar como cultura familiar, e que já são, assim, iniciados nos conteúdos

e na linguagem utilizada no mundo escolar.4

O argumento central do sociólogo é, então, o de que ao

dissimular que sua cultura é a cultura das classes dominantes, a escola

dissimula igualmente os efeitos que isso tem para o sucesso escolar das

classes dominantes. As diferenças nos resultados escolares dos alunos

tenderiam a ser vistas como diferenças de capacidade (dons desiguais)

enquanto, na realidade, decorreriam da maior ou menor proximidade

entre a cultura escolar e a cultura familiar do aluno. A escola cumpriria,

assim, portanto, simultaneamente, sua função de reprodução e de

legitimação das desigualdades sociais. A reprodução seria garantida

pelo simples fato de que os alunos que dominam, por sua origem, os

códigos necessários à decodificação e assimilação da cultura escolar e

que, em função disso, tenderiam a alcançar o sucesso escolar, seriam

aqueles pertencentes às classes dominantes. A legitimação das desigualdades

sociais ocorreria, por sua vez, indiretamente, pela negação

do privilegio cultural dissimuladamente oferecido aos filhos das classes

dominantes.

O autor observa que o efeito de legitimação provocado pela

dissimulação das bases sociais do sucesso escolar é duplo: manifestar-seia

em relação tanto aos filhos das camadas dominantes quanto dominadas.

Os primeiros, pelo fato de terem recebido sua herança cultural desde

muito cedo e de modo difuso, insensível, teriam dificuldade de se

reconhecer como “herdeiros”. Suas disposições e aptidões culturais e

lingüísticas pareceriam ser naturais, fazer parte de sua própria

personalidade. O segundo grupo, por outro lado, sendo incapaz de

perceber o caráter arbitrário e impositivo da cultura escolar, tenderia a

atribuir suas dificuldades escolares a uma inferioridade que lhes seria

inerente, definida em termos intelectuais (falta de inteligência) ou morais

(fraqueza de vontade).

Bourdieu (1992, p. 52) ressalta que em relação às camadas

dominadas, o maior efeito da violência simbólica exercida pela escola

não é a perda da cultura familiar e a inculcação de uma nova cultura

exógena (mesmo porque essa inculcação, como já se viu, seria prejudicada

pela falta das condições necessárias à sua recepção), mas o reconhecimento,

por parte dos membros dessa camada, da superioridade e legitimidade

da cultura dominante. Esse reconhecimento se traduziria numa

desvalorização do saber e do saber-fazer tradicionais – por exemplo, da

medicina, da arte e da linguagem populares, e mesmo do direito

consuetudinário – em favor do saber e do saber-fazer socialmente

legitimados.

A reprodução e legitimação das desigualdades sociais propiciada

pela escola não resultariam apenas, no entanto, da falta de uma bagagem

cultural apropriada para a recepção da mensagem escolar. Bourdieu

procura demonstrar que a escola valoriza e cobra não apenas o domínio

de um conjunto de referências culturais e lingüísticas, mas, também,

um modo específico de se relacionar com a cultura e o saber. O sistema

escolar tenderia a reproduzir a distinção entre dois modos básicos de se

relacionar com a cultura: um primeiro, desvalorizado, se caracterizaria

pela figura do aluno esforçado, estudioso, que busca compensar sua

distância em relação à cultura legítima por meio de uma dedicação tenaz

às atividades escolares; e um segundo, valorizado, representado pelo aluno

tido como brilhante, talentoso, inteligente, muitas vezes precoce, que

atende às exigências da escola sem demonstrar traços de um esforço

laborioso ou tenso. O sistema de ensino, sobretudo nos seus ramos mais

elevados, valorizaria e cobraria dos alunos essa segunda postura. Bourdieu

observa que nas avaliações formais ou informais (particularmente nas

provas orais) exige-se dos alunos muito mais do que o domínio do

conteúdo transmitido. Exige-se uma destreza verbal e um brilho no trato

com o saber e a cultura que somente aqueles que têm familiaridade com

a cultura dominante podem oferecer.

Essa naturalidade ou desenvoltura não seria reconhecida pela escola,

no entanto, como algo socialmente herdado. Ao contrário, tenderia a ser

interpretada como manifestação de uma facilidade inata, de uma vocação

natural para as atividades intelectuais. Cumpriria-se, portanto, mais uma

vez, as funções de reprodução e legitimação atribuídas por Bourdieu à

escola. A escola valorizaria um modo de relação com o saber e a cultura

que apenas os filhos das classes dominantes, dado o seu processo de

socialização familiar, poderiam exibir. Valorizar-se-ia uma desenvoltura

intelectual, uma elegância verbal, uma familiaridade com a língua e com

32 Educação & Sociedade, ano XXIII, no 78, Abril/2002

a cultura legítima, que, por definição, não poderiam ser adquiridos

exclusivamente pela aprendizagem escolar. Ao mesmo tempo, no entanto,

nega-se que essas habilidades sejam frutos da socialização familiar

diferenciada vivida pelos alunos e supõe-se que elas são indicadores de

inteligência e talento natural. Em poucas palavras, a cultura dominante

ou, mais especificamente, o modo dominante de lidar com a cultura é

valorizado pela escola, usado como critério de avaliação e hierarquização

dos alunos e, ao mesmo tempo, negado, dissimulado. Os alunos

oficialmente estariam sendo julgados, exclusivamente, por suas

habilidades naturais.

Sinteticamente, é possível dizer que as reflexões de Bourdieu

sobre a escola partem da constatação de uma correlação entre as

desigualdades sociais e escolares. As posições mais elevadas e prestigiadas

dentro do sistema de ensino (definidas em termos de disciplinas, cursos,

ramos do ensino, estabelecimentos) tendem a ser ocupadas pelos

indivíduos pertencentes aos grupos socialmente dominantes. Para

Bourdieu, essa correlação nem é, obviamente, casual, nem se explica,

exclusivamente, por diferenças objetivas (sobretudo econômicas) de

oportunidade de acesso à escola. Segundo ele, por mais que se

democratize o acesso ao ensino por meio da escola pública e gratuita,

continuará existindo uma forte correlação entre as desigualdades sociais,

sobretudo, culturais, e as desigualdades ou hierarquias internas ao

sistema de ensino. Essa correlação só pode ser explicada, na perspectiva

de Bourdieu, quando se considera que a escola dissimuladamente

valoriza e exige dos alunos determinadas qualidades que são

desigualmente distribuídas entre as classes sociais, notadamente, o

capital cultural e uma certa naturalidade no trato com a cultura e o

saber que apenas aqueles que foram desde a infância socializados na

cultura legítima podem ter.

Em resumo, a grande contribuição de Bourdieu para a

compreensão sociológica da escola foi a de ter ressaltado que essa

instituição não é neutra. Formalmente, a escola trataria a todos de modo

igual, todos assistiriam às mesmas aulas, seriam submetidos às mesmas

formas de avaliação, obedeceriam às mesmas regras e, portanto,

supostamente, teriam as mesmas chances. Bourdieu mostra que, na

verdade, as chances são desiguais. Alguns estariam numa condição mais

favorável do que outros para atenderem às exigências, muitas vezes

implícitas, da escola.

Ao sublinhar que a cultura escolar é a cultura dominante

dissimulada, Bourdieu abre caminho para uma análise mais crítica do

currículo, dos métodos pedagógicos e da avaliação escolar. Os conteúdos

curriculares seriam selecionados em função dos conhecimentos, dos

valores, e dos interesses das classes dominantes. O próprio prestígio de

cada disciplina acadêmica estaria associado a sua maior ou menor afinidade

com as habilidades valorizadas pela elite cultural.5 A transmissão dos

conhecimentos seguiria o que Bourdieu chama de pedagogia do implícito,

o pleno aproveitamento da mensagem pedagógica suporia, implicitamente,

a posse de um capital cultural anterior que apenas os alunos

provenientes das classes dominantes apresentam. Finalmente, a avaliação

dos professores iria muito além da simples verificação do aprendizado,

constituindo, na prática, um verdadeiro julgamento social, baseado na

maior ou menor discrepância do aluno em relação às atitudes e

comportamentos valorizados pelas classes dominantes. Embora Bourdieu

não tenha se aprofundado em nenhuma dessas áreas, não tendo, portanto,

penetrado, propriamente dito, na “caixa preta” do estabelecimento de

ensino, ele deixou, sem dúvida alguma, uma série de pistas que continuam

a alimentar as discussões atuais.

Apesar dos seus méritos inegáveis, as reflexões de Bourdieu sobre

a escola recebem também algumas críticas importantes. Mais uma vez,

o problema central parece ser o modo como Bourdieu utiliza o conceito

de classe social. A escola, sobretudo nos seus trabalhos produzidos até

os anos 70, é apresentada como uma instituição totalmente

subordinada aos interesses de reprodução e legitimação das classes

dominantes. Os conteúdos transmitidos, os métodos pedagógicos, as

formas de avaliação, tudo seria organizado em benefício da perpetuação

da dominação social. Contrapondo-se a essa perspectiva, uma série de

autores tem acentuado, em primeiro lugar, que o conteúdo escolar não

pode ser, globalmente, definido como sendo um arbitrário cultural

dominante. Boa parte dos conhecimentos veiculados pela escola seria

epistemologicamente válida e merecedora de ser transmitida. O fato

de que os grupos socialmente dominantes dominam os conteúdos

valorizados pelo currículo escolar não é suficiente para que se afirme

que esses conteúdos foram selecionados por pertencerem a essa classe.

Na verdade, o raciocínio pode ser até o inverso. Por serem reconhecidos

como superiores (por suas qualidades intrínsecas) esses conteúdos

passaram a ser socialmente valorizados e foram apropriados pelas

camadas dominantes.

Um segundo aspecto diz respeito à diversidade interna do sistema

de ensino. As escolas e os próprios professores, dentro delas, não seriam

todos iguais. Há variações no modo de organização da escola, nos

princípios pedagógicos adotados, nos critérios de avaliação etc. Não se

pode desprezar o efeito dessas variáveis no desempenho escolar dos

alunos. Parece claro, por exemplo, que as várias iniciativas que buscam

promover uma aproximação mais respeitosa entre a cultura escolar e a

cultura de origem dos alunos – organizando o ensino a partir dos

conhecimentos anteriores trazidos pelos alunos, respeitando e

valorizando os modos de fala e as tradições de cada grupo social etc. –

podem, no mínimo, adiar o processo de eliminação ou auto-eliminação

(desistência) dos alunos. Nos seus primeiros trabalhos, o próprio

Bourdieu falava da possibilidade de uma “pedagogia racional”, que ao

invés de supor como dados os pré-requisitos necessários à decodificação

da comunicação pedagógica (capital cultural e lingüístico), se esforçaria

para transmiti-los metodicamente a quem não os recebeu na família.

Esse otimismo pedagógico, no entanto, foi rapidamente abandonado.

Prevalece na obra de Bourdieu a percepção de que o processo de

reprodução das estruturas sociais por meio da escola é, basicamente,

inevitável. As diferenças culturais e escolares entre as classes seriam

relativas e, portanto, dificilmente poderiam ser transpostas. A ampliação

do acesso (e mesmo do aproveitamento) das classes médias e populares

à escola, por exemplo, seria acompanhado de uma elevação paralela do

nível e da qualidade da escolarização das elites, de tal forma que as

diferenças relativas entre as classes tenderiam a se manter, aproximadamente,

as mesmas. De fato, quando a análise é feita no plano

macrossocial das relações entre as classes, Bourdieu tem boas razões

para ser pessimista. Essa análise, no entanto, não pode ser transposta

diretamente para o plano microssociológico. Existem diferenças

significativas no modo como cada escola e ou professor participa desse

processo de reprodução social. Essas diferenças foram, em grande

medida, negligenciadas por Bourdieu.

Considerações finais

A grande contribuição da Sociologia da Educação de Pierre

Bourdieu foi, sem dúvida, a de ter fornecido as bases para um rompimento

frontal com a ideologia do dom e com a noção moralmente carregada de

mérito pessoal. A partir de Bourdieu, tornou-se praticamente impossível

analisar as desigualdades escolares, simplesmente, como frutos das

diferenças naturais entre os indivíduos.

As limitações dessa abordagem, no entanto, se revelam sempre

que se busca a compreensão de casos particulares (famílias, indivíduos,

Educação & Sociedade, ano XXIII, no 78, Abril/2002 3 5

escolas e professores concretos). Bourdieu nos forneceu um importante

quadro macrossociológico de análise das relações entre o sistema de

ensino e a estrutura social. Esse quadro precisa, no entanto, ser

completado e aperfeiçoado por analises mais detalhadas. Faz-se

necessário, em especial, um estudo mais minucioso dos processos

concretos de constituição e utilização do habitus familiar, bem como

uma análise mais fina das diferenças sociais entre famílias e contextos

de escolarização.

.

Notas

1 . Ver Bourdieu, “Os três estados do capital cultural”, 1998.

2 . Bourdieu contrapõe o rigorismo ascético das frações ascendentes das classes médias ao rigorismo

repressivo e conservador adotado pelas frações declinantes.

3 . Bourdieu chama o processo de imposição dissimulada de um arbitrário cultural de violência

simbólica.

4 . Bourdieu ressalta que as diferenças culturais entre os alunos das diversas classes sociais seriam

menos evidentes nos ramos mais elevados do sistema de ensino. Isso ocorreria porque os

alunos das classes médias e populares que chegam a esse nível do sistema de ensino já teriam

passado por um processo de “super-seleção”, no qual teriam sobrevivido aqueles que menos se

distanciavam da cultura escolar.

5 . Assim, Bourdieu (1987) contrapõe, no caso do ensino superior francês, disciplinas “de talento”,

como o Francês e a Filosofia, que exigiriam certas habilidades “não escolares” (que só poderiam

ser plenamente adquiridas fora da escola, ou seja, na família), sobretudo, uma elegância e uma

destreza marcantes no uso da língua, à disciplinas “de trabalho”, como a Geografia e o Desenho,

que poderiam ser dominadas a partir de um esforço propriamente escolar.

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